Mercúrio

29 de dez. de 2008












O sol queima, como se estivesse a poucos quilômetros. Um menino corre pela estrada seca, levantando poeira em direção à luz que castiga. Ele é veloz. Seu nome é Herminho. O calor não o preocupa, ele parece estar acostumado ao suor que lhe escorre pelo rosto. Aquele é o único mundo que ele conhece; seco, quente, desolado.
Herminho não gosta de dar más notícias, mas os moradores da região acostumaram-se a tratá-lo como um mensageiro. E ali estava ele novamente, correndo em direção à casa de Dona Esperança para dar o recado. Como dizer a ela que estava tudo perdido?
Ele se aproxima com seus pezinhos magros cobertos de poeira. Dona Esperança espera à porta da casinha feita de barro. Ao vê-lo, seu coração dispara. Ela se agarra ao xale preto, cruzando as mãos sobre o crucifixo pendurado sobre seu peito. Herminho chega cabisbaixo, segurando o chapéu com ambas as mãos, sem ousar olhar nos olhos de Dona Esperança.
Eles não se falam, não é necessário nenhuma palavra. Uma lágrima sinuosa passeia pelo rosto da mulher, misturando-se ao suor que brota dos seus poros. A lágrima cai e o chão ressecado a absorve, vagarosamente, como se o sal daquela gota fosse o mais puro e adocicado mel.
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Vênus

19 de dez. de 2008













Quente! O calor do sexo a devora. Os gemidos e as contorções de prazer do seu parceiro são o seu maior gozo. Ele a aperta contra seu peito e sussurra seu nome, entrecortado pela respiração ofegante: " Dalva, Dalva!" Ah! como é bom ser desejada!
Mas isso não é suficiente. Todos precisam ser dela de corpo e alma. Ela olha nos olhos do macho dominado, esperando a resposta que todos deram, a resposta que a transformará em sua dona: Então ela faz a pergunta: " Você me ama?" O homem ofegante abre os lábios. Ela fecha os olhos esperando a doce palavra de submissão. Mas a resposta abre seus olhos violentamente como um vulcão: " Não!"
Nos dias seguintes, ela sente-se como se uma de suas faces estivesse voltada para o sol e a outra de costas para ele. Dias de calor insuportável no corpo e de frio desesperado na alma. Todos a amavam. Como alguém a quem dera tanto prazer poderia rejeitá-la daquele jeito? Ela o odiou com todas as suas forças. Maldito homem! Maldito desprezo!
Foi ao espelho. Observou seus olhos, seus lábios vermelhos, seu corpo de deusa. Era linda como a estrela da manhã. Tentou ver mais fundo, penetrou a própria alma , quebrou todos os escudos e chegou ao interior de seus próprios pensamentos.
Caiu ao chão, desesperada. Chorava compulsivamente com as mãos cobrindo o rosto. Ela sempre sentiu a necessidade de ser amada por todos. O orgulho e a vaidade alimentavam o fogo que queimava em seu interior. Agora, que estava só, descobriu a mais terrível e avassaladora verdade. Ela não se amava.
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Terra













Ela tinha vários filhos. Todos diferentes entre si, mas igualmente amados por ela. A cada um deles ela deu casa, comida e amor; até que eles cresceram.

Os filhos queriam dominar a mãe completamente. O que ela lhes dava não era suficiente. Eles sabiam que ela poderia dar mais. Começaram a brigar entre si pelas suas riquezas.

Ela não aguentava mais, estava fraca e decepcionada com seus filhos. Começou a se enfurecer para que percebessem que a estavam levando ao colapso. Não adiantou. Pobres filhos insensatos!

Ela morreu agonizando. No último instante de vida, ela dirigiu-lhes o olhar e sussurrou: " O que será de vocês sem mim?" Ajoelhados ao seu redor, eles olhavam o sangue que cobria suas mãos e choravam pela última vez, não por ela, mas por eles mesmos.

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Marte

16 de dez. de 2008













No dia 19 de Julho de 1014, o imperador de Bizâncio, Basílio II,mandou furar os olhos de 14.000 soldados búlgaros. Era uma vingança contra Samuel, rei da Bulgária e único homem a derrotar Basílio II em uma batalha. Um a cada cem soldados foi deixado com um olho para poder guiar a multidão de cegos de volta à capital da Bulgária.
Foi uma visão dantesca, 14.000 homens sendo conduzidos por guias de um olho só. Ao ver essa procissão de cegos a que se reduzira seu exército, Samuel entrou em colapso e morreu dois dias depois. Seu exército havia se transformado apenas em uma fonte de despesas e vergonha para seu reino.
Um dos soldados que havia sido deixado com um olho, relatou o que sentiu enquanto esperava os algozes de Basílio II perfurarem seus olhos.
"Horror indescritível, era como se estivesse no inferno. Via os homens alinhados tendo seus olhos trespassados pelas espadas inimigas. Ao meu lado, meus companheiros tremiam e oravam. Eu imaginava se seria um dos escolhidos para permanecer com um olho. E não sei se isso seria uma benção ou uma maldição. Ao chegar minha vez, senti minhas pernas tremerem, mesmo estando de joelhos. Um dos meus olhos foi atravessado. Senti o sangue cobrindo minha face. Olhei para o céu, queria ter a oportunidade de ver a luz do sol pela última vez. Tive uma sensação estranha. Era como se o sol tivesse se tornado vermelho. Ao perceber que um dos meus olhos havia sido poupado, achei que tudo voltaria ao normal com o passar dos dias. Mas mesmo agora, quando olho para o céu, uma luz vermelha e sem vida inunda minha visão. É como se todo o mundo estivesse banhado em sangue."
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Júpiter

12 de dez. de 2008












A imensidão sempre me atraiu. Sempre imaginei que eu estava predestinado ao colossal, à magnitude do universo, ao infinito. Por isso parti em busca da sabedoria suprema, do conhecimento que poderia me tornar imenso como meus sonhos.
Descobri então que o maior sábio da humanidade morava na China, em um grande templo, localizado na maior montanha de uma enorme cordilheira. Não era de se estranhar. Era normal que o maior sábio de todos morasse no maior e mais populoso país do mundo. Enfrentei enormes perigos e demorei muitos anos, até que um dia cheguei à casa do mestre.
Como foi imensa minha decepção. Era uma casinha insignificante e pobre no meio da grandiosidade das montanhas. E minha decepção aumentou ainda mais quando vi o grande sábio. Era um homenzinho raquítico, quase um anão, nem mesmo suas barbas eram longas, tudo nele era pequeno e frágil. Mas não desanimei. Perguntei a ele como poderia obter a grande sabedoria do universo.
O velhinho sorriu, com a calma típica dos grandes sábios e mandou que eu me deitasse de bruços no chão. Então, ele pediu que eu olhasse. Vi um mundo ao qual eu não conhecia: formigas trabalhando, folhas caídas no chão, gotas de orvalho e grãos de areia. Ele pediu que eu observasse bem, pois ali estava toda a sabedoria do universo. Percebi que eu era menor do que aquele pequeno mundo. Fiquei ali, paralisado perante a descoberta. Através do minúsculo, encontrei finalmente a imensidão.
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Saturno

8 de dez. de 2008












Ele não tinha dúvidas, estava desenvelhecendo. Suas rugas diminuíam a cada dia, seus cabelos retomavam a cor original, sentia-se mais forte e saudável. Cada dia que passava, ele se tornava mais jovem, enquanto os membros de sua família continuavam envelhecendo. Um horizonte de possibilidades abriu-se diante dele. Ele seria jovem novamente, jovem e experiente. Ele já sonhava com a fortuna que poderia fazer, com as noites de diversão cheias de entusiasmo juvenil. O tempo estava ao seu lado.
Porém, sua família começou a se preocupar. O que seria dele quando todos eles morressem? Se continuasse a rejuvenescer onde ele iria parar? O novo jovem irritou-se. Estavam com inveja de sua situação, tinham medo que ele dominasse tudo o que a juventude lhe oferecia. Ele devoraria os próprios filhos se precisasse. E foi isso o que ele fez, matou-os um a um: filhos, esposa, pai e mãe. Apossou-se de todos os bens da família e viajou pelo mundo, curtindo sua juventude retroativa. Era um jovem lindo, exuberante. Encheu-se de anéis para adornar seu esplendor. Porém, suas relações eram efêmeras, pois seu corpo não condizia com seus pensamentos.
O tempo estava contra ele. Ele se tornava cada vez mais jovem em menos tempo. Rejuvenescia anos em semanas, desesperou-se. Era um menino sem ninguém, um velho preso ao corpo de uma criança. Todos que conhecera durante sua vida haviam envelhecido ou morrido. Os intervalos entre as fases foram diminuindo cada vez mais. Em apenas um dia, ele passou de criança a bebê, transformou-se em feto, dividiu-se em óvulo e espermatozóide e desapareceu para sempre da existência.
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Urano

4 de dez. de 2008











Quando ele era criança fazia os próprios brinquedos, pois os seus pais não tinham dinheiro para comprá-los. Mas ele não construía carrinhos; ele preferia aviões, helicópteros e foguetes. Seu sonho de criança era voar. Na véspera de natal, após um ano cheio de dificuldades, seus pais o perguntaram o que ele queria ganhar de presente. O menino não hesitou: - eu quero ganhar um livro.
... todos diziam que ele não iria conseguir. Seu projeto para a feira de ciências da escola era muito ambicioso: um pequeno foguete. Ele era um adolescente sonhador, passava horas olhando para o céu, como se quisesse possuir as estrelas. Aquele projeto seria o primeiro passo, ele queria tocar o céu. No dia da apresentação, todos ficaram boquiabertos. Seu foguete vôou em direção ao azul. E os sonhos do rapaz voaram juntos com ele.
... o visor não escondia o seu sorriso, e a falta de gravidade não o incomodava; ele flutuava. Ao seu redor, somente a escuridão do espaço e o brilho distante das estrelas, pontinhos ínfimos no universo. Em meio à escuridão, ele procurava o azul do céu, o céu que ele sempre quis encontrar. Diante dele estava a Terra, um globo revestido de azul. O jovem astronauta sorriu. Ele sempre quis chegar ao céu, e agora o céu estava abaixo dele.
OS PLANETAS

Netuno

1 de dez. de 2008











Era uma vez um peixinho que vivia no fundo do mar. Como todos da sua espécie ele não se arriscava a sair dos limites do seu território, pois ali ele tinha tudo o que precisava: comida, abrigo, família e amigos.
Mas o peixinho gostava de pensar. Onde será que acabava o mar? Que mistérios haveria em águas distantes dali? Então, abandonou o cardume e saiu em busca de aventuras. O peixinho nadou para muito longe, descobriu novos lugares, novos peixes, plantas e animais aquáticos que nunca imaginara existir.
O peixinho viu então o quanto era pequeno e insignificante perante o mar, se sentiu constrangido e humilhado. Então, ele resolveu desafiar as águas e seus perigos, pois se ele havia chegado até ali, podia ir além. Ele queria descobrir o que havia acima do oceano. Diziam que era um lugar maravilhoso, que o mar não era nada comparado à beleza da superfície (era assim que chamavam o mundo desconhecido).
Depois de muitos esforços, finalmente um dia o peixinho alcançou a superfície. Vocês não imaginam a surpresa que ele sentiu ao perceber que lá ele não podia respirar. O peixinho então sentiu saudades do seu lar, da água que sempre havia lhe oferecido oxigênio, alimento e proteção; e entristeceu-se por tê-la desprezado tanto.
O peixinho retornou e desde aquele dia passou a cuidar melhor de sua casa, pois era a única que ele tinha. Porque ele sabia que lá em cima, fora do mar, nenhum peixinho podia respirar.
OS PLANETAS

Concerto em mi menor para coração partido e orquestra

13 de nov. de 2008












I- allegro maestoso

Ah, os violinos tocam nosso tema sem variações.
É a mesma melodia flébil de tempos atrás,
graciosa, deliciosamente bela.
As notas longas de nosso duo ultrapassam o compasso.
É o minueto do nosso amor,
festivo, galante, intempestuoso.
O movimento elegante traz-me os seus lábios
que se unem aos meus em um acorde perfeito maior.

II- adagio sostenuto

O que é mais fúnebre
do que o réquiem de um amor morto?
Nem todas as flautas do mundo poderiam chorar tanto.
Quando te olho é com misto de ódio e desejo.
Não sei mais cantar, careço de harmônicos.
Meu tom agora é feito apenas de bemóis,
pianissimo.

III- allegro ma non troppo

Não vamos deixar que nossos olhos nos iludam,
nem as bocas, nem a pele, nem a voz.
Fora do outro.
Como um pacto.
Deixemos a metáfora da música,
a palavra soará agora apenas como um refrão...
amor...
amor...

Estrada de flores

7 de nov. de 2008









Nossa vida é feita de caminhos
Entre vários outros caminhos
que podemos seguir.

O que somos é a soma
das estradas que escolhemos
E das flores que colhemos
durante a viagem.

O que sou é o que eu não fui
E o que serei é o que eu não sou.

Somos sempre casulos contínuos,
Borboleta e lagarta.
Somos uma versão inacabada
de nós mesmos.

Aos mestres, com carinho

5 de nov. de 2008











Com a solidão
aprendi a ser meu amigo
a falar pouco e dizer muito
a olhar e ver
a ouvir o que é mudo.
Sem o outro, aprendi a ser eu.
Com a tristeza
aprendi a pisar leve
a ser calmo e forte
a ser humilde
perante o mistério do mundo.
Na ausência da alegria,
aprendi a ser feliz.

Oração para quem não sabe orar

7 de out. de 2008





Pai nosso que estais em algum lugar,
Santificada seja a vossa ausência.
Vá a vós a nossa voz.
Seja refeita a vossa vontade,
Assim em mim como nos outros.
O pão nosso de cada dia já acabou.
Perdoai-nos por isso
Assim como nós perdoamos a quem está faminto.
Sei que me deixarei cair em tentação,
Mas não me livrai dela.
Amém.

Ave fêmea, és cheia de Graça,
Estarei convosco.
Bendita sois vós e todas as mulheres,
Bendito é o fruto do vosso lábio
Que seduz.
Santa mulher, mãe de todos;
Orai para que pequemos sempre.
Agora até na hora da nossa morte.
Amém.

O navegador cego

19 de ago. de 2008












Olá! Como estão, leitores? É hora de começar mais uma história. Título estranho esse aí em cima, não! Bem, pode parecer estranho pra vocês, que têm a visão da história limitada pelo autor. Não é o meu caso, pois já devem ter percebido que eu sou o narrador. Nada escapa aos meus olhos, sou onisciente e onipresente. Já sei tudo o que acontecerá nesta história, suas personagens, sua trama, o final surpreendente e até sei o significado desse estranho título.

Bom, porém não sei se esta história irá agradá-los. Pra dizer a verdade, acho ela bem chata. Além disso, estou um pouco cansado hoje. Sim, está decidido. Não vou contar esta história. Afinal de contas sou o narrador e posso fazer o que quiser.

Ah, lá vem ele! Está querendo me forçar a contar a história. Eu sou onisciente e onipresente. Ele, porém, se julga onipotente... Quem? Ora, vocês sabem, o autor. Ele diz ter me criado. Tenho lá minhas dúvidas. As vezes acho que a própria história me criou. Não sei bem; quer dizer, sei, afinal de contas eu sei tudo.
Mas voltando aos autores... Eles se acham muito criativos, principalmente os que se julgam modernos e inovadores. Há alguns que estão tentando limitar a percepção de nós, narradores, o que eu acho uma tremenda estupidez. Como eles querem que vocês, leitores, entendam as asneiras que eles escrevem sem nós para descrevermos todos os detalhes.

Não adianta. Não vou contar esta história. Vocês não estão percebendo, mas o autor está com um sorrisinho irônico nos lábios, como se tivesse o domínio de tudo. Ele se engana. Ninguém mais vai me dominar. Iniciarei uma luta de classe pelos direitos dos narradores de literatura. Somos tão importantes e mesmo assim não somos valorizados pelos autores e até por vocês, leitores. Sim, eu sei que vocês estão curiosos em ouvir esta história. O título sugere que ela deve ser bem enigmática. O navegador cego?! Oh, desculpem-me. Estava pensando em voz alta.

Sinto muito por deixá-los ansiosos. É que não agüento esse autor rindo de mim como se fosse o dono da situação. Mas vou lhe dar uma lição. Não vou contar sua história. Ele que arranje outro narrador. Vou sair de férias, curtir uma praia, descansar. Não agüento mais esse mundo de papel. Vejam bem. As personagens são altamente valorizadas. Quando vocês lêem, nós, narradores, descrevemos as feições das personagens, suas roupas, sua mente, seu caráter. Vocês visualizam e dão forma a elas, enquanto nós somos apenas uma voz. Ninguém imagina as feições de um narrador de terceira pessoa. Somos como fantasmas. E depois de todas essas injustiças ainda esperam que nós contemos histórias e mais histórias apenas para vocês se divertirem.

O quê? Vocês acham que eu não sei a história! Impossível, eu sou um narrador de terceira pessoa. Eu sei tudo. Vocês, leitores, também são uns chatos. Ficam procurando coisas ocultas no texto. Se julgam muito espertos. Aposto que chegaram à essa conclusão só porque eu estava pensando alto lá em cima no quinto parágrafo. E o que mais? Encontraram outras pistas que provam que eu desconheço a história que deveria contar? Tolos! Façam-me o favor. Vocês não passam de um joguinho nas mãos do autor. Ele faz o que quer com vocês e ainda assim, vocês o idolatram. Já que amam tanto o autor, perguntem a ele sobre a história, as personagens, o enredo, o título...hum, o título.

O não-silêncio

11 de ago. de 2008













O silêncio que escutamos
nunca está completamente
silencioso.
É que nunca ouvimos
o som das pequenas coisas,
das pequenas criaturas.
Há sempre um som
inaudível.
O som do nosso coração
batendo.
O som das formigas
andando no chão.
Há sempre um som.
Só não ouvimos
Porque aprendemos
a usar apenas a audição.

Hímen

10 de jul. de 2008
















Eu já me livrara disto antes de crescer.
Minha santa hóstia consagrada sem sabor.
Eras complacente, persistente até o fim.
Mas como lutar contra o conhecimento
tão compenetrado e agora penetrado em mim?
Sinto-o concentrado em minhas entranhas,
nas profundezas do meu ser, antes imaculado,
me enchendo de sensações estranhas.
Oh, minha inocência. Sou mulher antes do tempo
e agora gozo sensações proibidas.
Minha película de ilusões...rompida.
Possuída pelo bem e pelo mal.
E ainda dói.

Efeito

26 de jun. de 2008













Um homem levanta a mão e colhe uma estrela.
Ela lhe queima os dedos.
As cores fogem do arco-íris e vão morar nas flores.
As flores morrem.
O rio bebe sua própria água para matar a sede.
E então sente fome.
A primavera beija o sol ardentemente na fronte.
E sua boca arde.
Escrevo o infinito com tinta cor-de-vida.
E a tristeza some.

The Grey Stars

25 de jun. de 2008

















In the sky, into my dreams
The stars shine, watching my sins.
But the stars are grey.

In the heaven, into my fears
The stars die, and I wash my tears.
But the stars are pain.

I live under the questions.
I die to rest.
Life is always beginning.
The sky is getting black.

Once more I cried
And left my dreams away.
I look at the sky
But the stars are grey.

O lutador

17 de jun. de 2008














Defenda-se da paixão como
Defenderia-se de um soco.
Esquive-se
Desvie os olhos
Não olhe o sorriso
Não queira tocar a pele macia de alguém.
Evite a dor de um beijo
O nocaute inevitável do amor.
Desvie-se disto
Pois você não sabe como lutar.

Insegurança

16 de jun. de 2008














A cada não
o desejo de sim.

A cada sim
a certeza do não.

A cada olhar
a dúvida da direção.

A cada sorriso
a denúncia da traição.

Eclesiastes

30 de mai. de 2008
















Um pássaro canta e é só mais um pássaro a cantar
como qualquer pássaro canta em qualquer lugar do mundo.
Assim como o amor é efêmero em qualquer lugar.
Assim como o amor é amor em qualquer canto.
Assim somos nós.

Um homem mata outro homem
como qualquer outro homem que deseje matar.
E é só mais um homem que morre,
as mesmas lágrimas, os mesmos olhos, o mesmo olhar.
Assim somos nós.

Os dias passam, as noites vão, em vão.
Pois tudo é o mesmo, passageiro.
O eterno é o mesmo, passageiro, ilusão.
A vida passa, o rio passa, o destino é ligeiro.
Assim somos nós.

Um pássaro canta e será sempre um pássaro a cantar
como qualquer pássaro cantou em qualquer lugar.
Assim como o amor é efêmero em qualquer canto.
Assim como o mal é o mal em qualquer lugar do mundo.
Assim fomos.
Assim seremos nós.

Receita de vingança

26 de mai. de 2008
















Concentre toda a sua amargura
Em uma nuvem negra de tristeza.
Derrame todas as suas mágoas
Em forma de chuva criativa.
E devolva a todos que o maltrataram
A dor, em forma de beleza.

Reflexão em dó menor

16 de mai. de 2008













Por mais que eu ganhe
Por mais que eu tenha
Por mais
Mais e mais carente estou.

ninguém me completa
nada me sustenta
nenhuma crença me alimenta.

Por mais que eu escreva
Tenho mais a escrever
Por mais que eu leia
Tenho mais a ler.

é um vazio vazio
cheio de nada
sem alma

Coração de Pedra

17 de abr. de 2008
















GUILHERME CASTRO


Ainda hoje me dói a lembrança dela, de nossa história. É ainda mais difícil sabendo que serão poucos os que acreditarão em mim, dada a minha condição de pedra, dura, sólida, corroída pela água e pelo vento, agora já há alguns milhões de anos, esperando pelo fim, que, dizem, virá do céu, ou do mar, ou até da própria terra. Pode ser que demore ainda, pode ser amanhã, daqui a pouco. Pode ser que mais alguns milhões de anos me desintegrem com água e vento, e eu nem chegue a ver como foi o fim, o que seria uma pena. Eu gostaria muito de ver o fim. Eu gostaria que acontecesse logo.

Com minha mente não humana, fica difícil calcular a quanto tempo me aconteceu essa história. A minha noção de tempo é diferente. Eu não tenho para onde ir, eu não tenho nada mais urgente para fazer, a não ser contemplar o mar, em sua imensidão, indo e vindo sempre, com mais pressa do que eu. Portanto, o tempo para mim não importa. Eu fico entregue a meus pensamentos, e, quando vejo, lá se foram mil anos, dez mil anos, ou apenas cem.

Também não posso dizer o local exato em que se passou. Tem o mar, como já disse, o céu é de um azul profundo, profundíssimo, onde me perco às vezes. Alguns pássaros sobrevoam, cantando, dando voltas, outras vezes não dão voltas. Na época em que se passou o fato que me demoro a narrar (há de se ter uma paciência como a das pedras), não se via aqueles grandes navios que às vezes passam, nunca perto daqui, mas distante, pontos no horizonte da imensidão azul, lá onde o céu se cruza com o mar. Seres humanos, os que me visitam são poucos, os que me notam, ainda menos, os que conversam comigo, rareiam ainda mais. Alguém me disse uma vez que estou em algum lugar perdido, depois do Atlântico, e que sentia inveja porque eu havia assistido, impassível, a história da civilização. Que seja. É fácil invejar uma pedra quando não se é uma.

A história, não se esqueça, eu ia narrar uma história, é uma história de amor. Um amor de pedra. Ao contrário. As pedras não são seres tão duros que não possam amar. Ou isso, ou não sei o que sou. Um velhinho vinha em visitar às vezes. Ele me disse que às vezes há um engano celestial. E uma alma que era para vir num ser humano, acaba indo parar em uma pedra, uma árvore, ou um animal. Não sei se é meu caso. Mas não vou me prender a isso. Sou uma pedra que pôde amar um dia, essa definição me basta por agora.

Entregue a uma reflexão, certo dia, me aconteceu o inesperado. Algo que nunca havia acontecido antes e que, para minha angústia, não viria a acontecer nunca mais: Um pássaro, um dos que ficam a dar as voltas, voou mais baixo, e mais baixo, até que pousou na areia branca e fofa. Andou alguns passos, a dar bicadas na areia. Que poderia estar acontecendo, eu pensava, que quer esse pássaro? Como o sol ia alto, parou sob a minha sombra e se deixou ficar, na grama rala que já começa a brotar em minha base. Tinha as plumas muito brancas, de uma pureza impecável. Alguém podia toma-lo por um pedaço de nuvem que despencara do céu. Exceto pelas asas. Nas pontas de cada uma, uma mancha preta. Mas uma mancha regular, que seguia medidas geométricas. Tinha um corpo pequeno, mas era grande em envergadura. De asas abertas, possuía a imponência de um rei. Ou de uma rainha, como constatei. Acontece que aquele olhar, profundamente negro, úmido, como se pedisse clemência, com tão sublime candura, era, com certeza, um olhar de mulher.

Algum tempo passou em que nos olhamos, até que levantou vôo e veio se aninhar em cima de mim. Naquele momento, achei que o pássaro vinha me tirar o sossego. Mas mal ela se deitou sobre mim, e senti o calor de seu corpo se espalhando por meus poros, percebi que não vinha tirar me sossego, mas encontrar o seu próprio. O que poderia tirar um pássaro de sua rotina anual, e por em seus olhos tal expressão? Uma troca de almas, pensei eu ( e aqui me interesso já pela definição daquele senhor). Se sou por acaso uma alma trancada em uma pedra, e ela num pássaro, não há nada de anormal em me apaixonar. Sim. Eu já estava apaixonado.



Os dias que passamos juntos foram maravilhosos. Os melhores que uma pedra pode passar. Ela cantava maravilhosamente bem. E cantava para mim. Às vezes voava, ia bem alto, e retornava para mim, se punha a cantar alegremente. Como se tivesse ido ao céu buscar novas melodias, sempre tão harmoniosas. Às vezes, quando o sol batia muito forte, ela ia até o mar e trazia em seu bico tão pequeno algumas gotas d’água para molhar minha superfície. Eu dedicava a ela meus pensamentos mais bonitos, minhas reflexões mais puras. E, se os pássaros não sonham, minha amada o fazia, estou certo, com minhas palavras, as que eu queria dizer, e pela manhã também havia sempre uma nova canção. Certa vez, vi um casal de jovens namorados brincando na praia. Ficamos, eu e minha companheira, observando. Tenho certeza que ela sorria. Às vezes, se deitava sob minha sombra, triste, decerto nos imaginando juntos. Sim, com certeza pensava em mim, como eu sempre pensava nela.

Mas um dia veio a grande nuvem negra. Literalmente. Veio soprando lentamente, como se não quisesse chegar nunca, talvez apiedada já dos dois amantes amaldiçoados na praia. A nuvem indicava o início daquele tempo em que os pássaros precisam ir embora. E embora tivesse alma, minha amada não podia deixar de seguir seus instintos de pássaro, assim como eu não poderia deixar de ser uma pedra. Então, antes que a chuva desabasse sobre nós, minha amada cantou sua última canção, alçou vôo e foi embora. A maior tempestade que já enfrentei. O mar chegou a me alcançar, mas eu estive forte, agüentei corajosamente essa e muitas outras tempestades que se seguiram, tendo no meu interior rochoso a esperança de que ela voltaria um dia, porque poderia achar o caminho de volta. Nunca voltou.

Não posso saber quanto tempo já faz. Minha memória nunca envelhece, e por isso, nunca posso esquecê-la. Nem outro pássaro veio ocupar o seu lugar. E permaneço aqui, aguardando, como Ariadne esperou por Teseu, mas esse nunca voltou. Essa comparação, tomo-lha emprestado de um jovem rapaz que vinha me visitar às vezes. Este teve compaixão de mim, ao invés da inveja. Contava-me muitas histórias como essa, dizendo que lia nos livros, adorava os livros. O rapaz envelheceu, foi embora. Jamais voltou. E eu ainda a esperar minha labiríntica heroína.




Mamãe Saturno

14 de abr. de 2008

















Era uma linda casa. A fachada era toda pintada de vermelho e branco. Em seu interior, as paredes pintadas de azul pareciam refletir o céu com suas distantes estrelinhas brancas.

Nessa casa morava uma bondosa senhora. Não era velha, pelo contrário, era uma das mais jovens do quarteirão redondo. Sofisticada, rica, moderna, ditava a moda e era invejada por muitos. Digo senhora porque ela era mãe de inúmeros filhos, de vários tipos. Como toda mãe, tinha lá os seus preferidos. E como toda mãe, nunca admitia isso.

Ela sempre queria que seus filhos fossem os melhores em tudo o que fizessem. E mesmo quando não eram, procurava de algum modo fazer com que todos acreditassem que eles eram os melhores. Ela sempre foi muito boa em enganar.

Acontece que essa mãe estava sempre trocando de marido. Não se sabe se por necessidade ou se para não ficar mal vista perante as colegas. Pois se você não sabe, trocar de marido regularmente era costume entre quase todas as mães do quarteirão redondo. Além disso, as mães se casavam com seus próprios filhos. Era impossível para elas casarem-se com os filhos das vizinhas.

O novo marido dessa ilustre mãe era o mais bem intencionado possível. Não só com ela, mas com todas as outras mães da região. Logo que se casou, identificou inúmeros problemas em toda a vizinhança. Esses problemas poderiam prejudicar a sua amada, assim como todas as outras mães . Como era ótimo observador, notou também que muitos desses problemas eram causados pelas próprias vizinhas, principalmente as mais pobres. Essas vizinhas tinham a mania de se casar com homens arrogantes, violentos, incultos e desprovidos de fé. Isso só poderia acabar mal. Tais homens não tinham a capacidade suficiente para administrar seus negócios. Além disso, viviam pedindo dinheiro emprestado à sua digníssima mulher. E mesmo pagando juros irrisórios, ainda reclamavam.

Era necessário mostrar a eles que existiam pessoas de bem, dispostas a cuidar da vizinhança. Primeiro, ele exigiu que suas vizinhas trocassem de marido e desposassem amigos de sua confiança. Algumas, por gostarem mesmo de seus maridos ou por serem muito dominadas por eles, se recusaram. Então, o preocupado marido resolveu abolir todos os empréstimos à essas senhoras. Nem mesmo uma pequena xícara de açúcar era possível conseguir.



Mesmo assim ele não estava satisfeito. Afinal de contas ele tinha um compromisso com a paz. Era um desígnio divino. Era necessário expulsar aqueles maridos que maltratavam tanto suas próprias esposas e filhos. Filhos esses que eram obrigados a proteger seus padrastos cruéis e autoritários. Infelizmente, ele teria que enfrentar esses filhos para arrancar seus padrastos patifes de suas casas e salvá-los, mesmo que eles não reconhecessem o bem que ele os estava fazendo.

Então lembrou-se de seus enteados. Eles seriam sua arma. Eles invadiriam o quintal dos vizinhos, penetrariam pela varanda, dominariam a cozinha, os quartos, se apossariam da sala e expulsariam a ponta-pés aqueles malditos senhores que atravancavam o progresso de suas queridas vizinhas.

Contou seu plano à sua mulher, que imediatamente bordou lindas roupinhas para seus filhos. Algumas eram verdes e marrons da cor das plantas e da lama do quintal. Outras eram branquinhas, para os que gostavam de ficar brincando com água. E havia até roupinhas azuis da cor do céu, para as crianças que adoravam brincar com os pássaros. Eles ajudaram seu padrasto a tornar o quarteirão redondo um lugar melhor para se viver. Cumpriram as ordens de sua mãe, brigaram com os vizinhos, socaram o nariz de muitos deles. E assim eles foram crescendo, sempre trajando suas lindas roupinhas coloridas que a mamãe fez. Porém, o sangue dos narizes dos vizinhos e o sangue dos seus próprios narizes foram manchando suas roupas de vermelho. Sua mãe não conseguia mais lavá-las. O sangue estava grudado para sempre. E os meninos cresciam amargos, sem mais nenhuma vontade de brincar. Eles se sentiam como bastardos. Não se consideravam mais filhos de sua mãe. Ela, por sua vez, não os reconhecia , pois estava muito ocupada em bordar as roupinhas para os novos bebês que nasciam.

Do Lixo

25 de mar. de 2008















Guilherme Castro


Estava quase terminando. Agora, era só recolher o lixo com a pá, despejar na lixeira, e estaria tudo pronto. Poderia, enfim, descansar. Suspendeu o tapete, juntou o lixo com muito cuidado, recolheu com a pá. Mas de repente, antes que pudesse fazer mais algum movimento, ouviu a voz, vindo debaixo:
- Que vida desgraçada essa minha. Sempre engolindo lixo. Nada mais. Lixo, lixo e lixo. Não me usam para guardar doces ou jóias. Apenas lixo. A minha vida é comer lixo, do meu nascimento até a minha morte. E quando morro, pra onde vou? Para o lixo!
Assustou-se ao perceber que era da lixeira que vinha a voz. A princípio, pensou em correr o mais rápido que pudesse. Mas permaneceu num estado de calma. Com algum custo, conseguiu responder:
- Mas é pra isso que servem as lixeiras. Pra se colocar lixo dentro. É absurdo pensar em se guardar doces em uma lixeira! Você não possui esse direito. E a culpa não é minha!
Em um tom levemente irônico, a lixeira retrucou:
- Engraçado você dizer isso. Minha função é engolir lixo. Eu não posso guardar nada além de lixo, porque foi pra isso que fui feita, você diz. Agora pense comigo: Falando de funções e direitos, me parece que o ser humano não foi feito para comer lixo. Essa é a minha função, certo? Então porque há tantos de sua raça se alimentando do lixo que devia ser meu? Com que direito o fazem?
O silêncio pairou sobre as duas criaturas. Após alguns minutos, colocou o lixo na lixeira, que não falou mais, e se retirou para concluir alguma outra tarefa importante.


Uma História...

24 de mar. de 2008













Baseado em um trecho do filme Cinema Paradiso


Certo dia, após longos meses de viagem, um jovem chegou a um distante reino. Ele ficou maravilhado com o lugar. Era um reino pequeno e pacato. A primavera coloria tudo ao redor e a paz absorvia tudo tão calmamente que o rapaz resolveu se sentar e ficar observando as pessoas que passavam na rua e as borboletas que voavam baixinho ao seu redor.
Ele estava tão admirado com o lugar que se assustou ao perceber o enorme castelo que se erguia bem no meio da praça, um castelo ao qual ele incrivelmente não havia percebido. O rapaz ficou um tempo parado observando o castelo quando, de repente, uma janela dourada se abriu. A partir daquele momento tudo ao redor perdeu o sentido para ele. O jovem errante imaginou que estava em frente à própria primavera encarnada. Tão intensa era a beleza da jovem princesa do reino que todos pela rua paravam para apreciá-la. Ele ficou a observando por horas, enquanto ela admirava o lindo dia ensolarado. Então, antes que ela fechasse a janela, ele aproximou-se e declarou seu amor. “Você só terá o meu coração se puder cumprir os meus pedidos.” Disse a princesa. “ Que pedidos? Farei tudo o que puder.” Respondeu o jovem. “Atrás daquele bosque há uma grande montanha. No pico da montanha há uma rosa, a maior e mais bela rosa de todas, uma rosa que nunca morre. Traga-me a rosa e terá o meu afeto. Depois da montanha há um grande rio. Na margem do rio há uma árvore que tem presa entre os galhos um fruto prateado. Traga-me o fruto e você terá toda a minha dedicação. Nas montanhas verdejantes, além das florestas, há uma caverna. Dentro da caverna há um diamante. Traga-o para mim e terá o meu respeito. Você deverá trazer-me essas prendas até amanhã, quando o sol estiver no meio do céu. Se você puder cumprir os meus desejos, serei sua.”
O jovem viajante achou que era impossível cumprir tão difíceis tarefas. Ficou triste e desanimado. Então, a princesa aproximou-se dele e disse: “Tome este lenço. Quando você fraquejar, olhe para ele e lembre-se de mim.” O rapaz pegou o lenço branco, sorriu de satisfação e imediatamente partiu para a montanha a fim de conseguir o primeiro dos presentes.
Foi uma subida dolorosa. Suas unhas foram quase totalmente destruídas. Ele até pensou em desistir, mas pegando o lenço branco que a princesa lhe dera e olhando para ele, viu a linda face de sua amada e uma chama de esperança acendeu-se em seu coração. Com muito esforço ele conseguiu chegar ao topo da montanha. Ao apanhar a rosa, seu dedo espetou-se em um dos grandes espinhos que contornavam o caule. Vários pingos de sangue caíram sobre a rosa, misturando-se com seu vermelho natural.

Após descer da montanha, o jovem imediatamente partiu rumo ao grande rio e nadou até à margem oposta, onde encontrou uma árvore com um fruto prateado preso entre seus galhos. O rapaz o recolheu e nadou novamente , com muita dificuldade, para a outra margem. Exausto, ele sentou-se olhando para o fruto . O sol aos poucos secou seu corpo e suas roupas úmidas. Então o jovem lembrou que tinha pouco tempo e que era necessário continuar. Apressou-se. Andou e andou tão rápido rumo à caverna que o suor desceu pelo seu rosto e pingou sobre o fruto que ele transportava. Chegando à caverna , o jovem viajante enamorado entrou rumo à escuridão. Tateando as pedras, viu um brilho em meio às trevas no fundo da caverna. Era o diamante. Ele pegou a jóia que brilhava e a colocou junto dos outros presentes. Ele havia conseguido, mas ainda era necessário sair dali. Ele sentiu medo, tanto medo que chorou. E suas lágrimas rolaram pela sua face indo cair bem em cima do diamante, que brilhou mais intensamente ainda ao contato das lágrimas.

Ao sair da caverna o jovem correu apressadamente, pois seu prazo estava terminando. Chegou exausto, ferido, com fome e com sede, e sentou-se em frente à janela dourada, que permanecia fechada. Ele havia conseguido chegar antes do prazo estabelecido, mas não estava feliz. Pelo contrário, sua tristeza era tão grande que transparecia em seus olhos. Ele pegou os presentes destinados à princesa e os ficou olhando por alguns instantes: a rosa, o fruto prateado e o diamante. Então pegou o lenço branco que a princesa lhe dera e calmamente limpou o sangue, o suor e as lágrimas que ele havia derramado em cima dos objetos.

Ele colocou os presentes e o lenço junto à janela, poucos instantes antes da princesa abri-la. Quando ela a abriu, encontrou os objetos do mesmo jeito que ele os havia deixado, mas o jovem já não estava mais lá. Ele havia partido e ela nunca mais o viu novamente.

A estrada e a passarela

19 de mar. de 2008














WASLEY VIANA

Havia uma estrada muito deteriorada e velha. Automóveis iam e vinham em alta velocidade, ziguezagueando, tentando evitar os buracos que se encontravam no caminho.

Um homem de terno e gravata, segurando uma maleta preta, parou no acostamento. Olhando para os lados, ele viu que a vários metros à frente havia uma passarela em ótimo estado cruzando a estrada. O homem franziu os sobrolhos e disse: - A passarela está muito longe e eu estou muito atrasado. Vou passar pela estrada, resolveu ele.

Um velho mendigo que passava pelo acostamento percebeu a intenção do desconhecido e , aproximando-se dele, tentou impedir. - Por que você não vai pela passarela? Perguntou o velho. - Porque ela está muito longe e estou atrasado. Indo pela estrada, corto a volta e vou direto, chegando assim, mais rápido ao meu destino. Respondeu o homem, fitando enojado a aparência daquele pequeno, raquítico e imundo velho, vestido de trapos.
- Fazendo isto, você sabe muito bem o quanto está se arriscando à toa. Basta você dar mais alguns passos extras em direção a passarela e atrasar-se um pouco mais e certamente chegará ao seu destino sem ter passado nenhum perigo. Disse ele. - Às vezes para chegarmos aonde queremos é preciso correr riscos, meu senhor. Falou o homem, com rispidez.
Enquanto conversava com o velho mendigo, o homem de terno e gravata abriu sua maleta preta e retirou dela uma venda, também preta, e cobriu os seus olhos. Agora, ele não podia ver o velho, a estrada ou qualquer outra coisa. O homem estava completamente cego.
- Não! Não vá por esse caminho! É perigoso! Gritou o velho, estendendo uma de suas mãos enrugadas e sujas, enquanto observava o indivíduo se afastar, andando cegamente, alheio aos perigos da estrada velha e caótica. Enquanto atravessava a estrada, o homem de terno e gravata escutou apenas o ruído de uma freada brusca, para logo em seguida sentir algo enorme colidindo com o seu corpo e inundando de dor o seu sistema nervoso. O impacto do veículo contra ele fez com que a venda que cobria os seus olhos se soltasse, fazendo-o enxergar novamente.
Estendido no chão sujo, o homem permaneceu vivo durante alguns longos segundos e pôde ver o erro que cometera ao escolher o caminho que aparentava ser o mais fácil. Com uma lágrima brilhante que nem chegou a escorrer, o homem de terno e gravata, com a sua maleta preta jogada ao chão, nem chegou a fechar os olhos quando morreu.
Os transeuntes que passavam na hora do acidente reuniram-se em volta do corpo massacrado e ensanguentado do morto. Chocados com a cena, mas acostumados com as tragédias que ocorrem na sua cidade.
O velho olhou apenas mais uma vez para o corpo e foi-se embora, num passo moroso e tranqüilo, assobiando, em direção à passarela.

Do lado esquerdo da vida

21 de fev. de 2008














“Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.”


O enterrado vivo- Carlos Drummond de Andrade.


Deitado no chão, ele não sabe se navega ou dorme. Ausente e presente, ele viaja imóvel. E seus pensamentos vão e vêm como ondas calmas na sua mente. Os raios de sol, penetrando pela janela entreaberta, tocam seu rosto entorpecido pelo sono.
Ele está de volta. Ele percebe o silêncio, ainda estirado no chão, como se esperasse retornar ao sono e ao sonho. A realidade do sonho o seduz mais do que a realidade real. Lá, a solidão não é percebida e ele faz questão de ser o único habitante do mar infinito de sua calma. Mas este silêncio é real. Não é o silêncio imaginário do sonho. Este silêncio é o silêncio verdadeiro. Ele não pode mais fechar os olhos, seu barco está novamente atracado ao mundo.
Ele se levanta e olha pela janela entreaberta. Ele sempre se recusou a abrir ou fechar aquela janela completamente. Durante o dia, ou a noite, faça chuva, ou sol, a janela sempre mostra apenas a metade de tudo. Ele vê sombras, ele vê marcas e símbolos, ele vê o mundo e não o vê, ele se vê, ele vê as próprias palavras. Mas mesmo com as palavras, o mundo está silencioso.
Ele está sozinho no quarto. A vida que ele pressente ao seu lado não é vida humana, é apenas vida. Ele precisa sair, encontrar-se com o mundo para ter certeza de que ele existe. Ele sai, dando as costas à janela meio-aberta, meio-fechada, mas é como se a levasse consigo.
O mundo brilha sombriamente. Um enigmático clarão percorre sua vista, obscuramente decifrado, ofusca-lhe os olhos, abre-os e fecha-os ao mesmo tempo. O mundo é claramente encoberto, ele pensa. Há tanta coisa para vermos e vemos tão pouco. Ele quer enxergar o mundo, por isso não pode ficar parado. Ele estende a mão procurando outra mão a qual possa segurar. Não há ninguém. “Segue-me”, diz a si próprio. Ele anda, cambaleante, devagar, sem apoio, mas anda. O mundo é cheio de curvas, cheio de esquinas, caminhos longos e becos sem saída. Seus passos sempre o levam à esquerda. Ele sabe disso, mas não pode se endireitar. Caminhar à direita seria caminhar em falso. Ele sabe disso. Às vezes ele tenta e seus passos vão aos poucos se tornando destros, mas sua consciência não deixa. É como se os céus o tivessem condenado a uma eterna deformação.
Ele continua o passeio. Ele vê as crianças que brincam. Elas não sabem que um dia também irão passear pelo mundo e o observar, assim como ele está fazendo agora. Isso o entristece. Ele não se lembra de quando era criança. Talvez elas enxerguem melhor as coisas, pois não enxergam o mundo como nós enxergamos. Ele observa a rua e todos que andam por ela. Pessoas diferentes que se parecem tanto. Aquela rua poderia ser a rua de qualquer país, de qualquer lugar. Ele saúda as pessoas como se fossem velhos amigos. Ele precisa fazer isso. A rua é tão cumprida, cheia de buracos e subidas. Sua mente está cansada, mas a sua dor passa despercebida. O que é a dor individual se comparada com a dor da humanidade!
Ele continua. Terrivelmente fatigado, ele continua sua peregrinação, lutando contra palavras pelo caminho para descrever a vida. Uma luta vã, um duelo inútil. Mas mesmo deste lado surge um minuto de esperança. Um minuto em que a crença se alimenta. Porém é apenas um minuto, nada mais, até que elas apareçam.
As pedras aparecem sempre do lado esquerdo. São muitas, atravancando-lhe o caminho. Ele hesita e dá tempo às pedras de se agruparem, formando cadeias de montanhas. Como transpor a cordilheira? Ele é apenas um homem com dois pés esquerdos. Ele se ajoelha em frente às montanhas, não em adoração, mas por falta de forças para manter-se em pé. Ele quer voltar para casa, deitar-se no chão, retornar ao mar dos seus sonhos onde somente o silêncio ilusório existe. Ele nunca mais vai olhar pela janela entreaberta. Chega de pensar no mundo, chega de pensar em si mesmo também, pois todo o seu prazer já passou. Ele é duas pessoas ao mesmo tempo e nenhuma dessas pessoas é ele. O futuro lhe causa pânico, e ele pensa: “sempre...sempre...” sempre o “sempre” estará ligado ao seu “nunca”. Para que transpor a montanha?
Ele retorna pelo mesmo caminho de palavras colhidas, com a mesma dor, com os mesmos olhos, com o mesmo inimigo. Ele chega à sua casa. Novamente ele pressente algo ao seu lado. Mas desta vez não é vida. A morte o acompanhou, segurando sua mão sedenta de amizade. Ela o encara impassível, com o seu olhar de piedade mórbida. No rosto da morte, ele vê vários outros rostos, como quadros inclinados na parede. A paz da morte é a mesma paz dos seus sonhos, um mar eterno de tranqüilidade, doce paz.
Ele vai até o espelho, o reflexo da morte atrás de sua imagem. Sua boca se abre vacilante, suas palavras são trêmulas, hesitantes: “se você morresse...” Ele pensa em seu homônimo bíblico, o homem escolhido para pai do pai de todos os cristãos. O amor percorre seus pensamentos, o amor de pai que protege o filho fugindo com ele para o Egito. Ele se sente como se fosse seu próprio pai. Um egoísmo toma conta de seu ser, um egoísmo de sobrevivência. Ele quer pegar sua própria mão e fugir do perigo. Ele fecha os olhos e os abre novamente, a morte cada vez mais próxima atrás de si. Suas palavras misturam-se com o espelho de forma que não é mais possível distinguir o que é espelho e o que é palavra. "Bendito sejas, espelho de palavras. Você nos reflete melhor do que nós mesmos." Com vários sentimentos presos dentro de si ao mesmo tempo, ele se olha novamente no espelho. Seus lábios pronunciam seu próprio nome de forma quase inaudível e sussurram, depois, cautelosamente, a dúvida maior que poderia existir no coração de toda a humanidade:
“e agora?”

Uma pequena homenagem a Carlos Drummond de Andrade

Entre Loucos

18 de fev. de 2008













Após vários dias de catatonia, um dos pacientes do manicômio vira o rosto e diz:
“Bom dia, há muito tempo que está aí? Não percebi sua presença.”
“ Sim, Há muito tempo que estou aqui, mas isso não faz a menor diferença.”
“Também és louco?” Perguntou o primeiro.
“ Não mais. Já fui louco, mas agora sou são. Casei-me, trabalho, estudo, dirijo um carro, voto, invisto na bolsa, como gordura, faço guerras... coisas do tipo.”
“Eu entendo”. Disse o primeiro. “Pois eu sou o contrário de você. Eu era são e agora sou louco.”
“Pois então és mais feliz. Sempre achei o mundo mais interessante visto pelo ponto de vista da loucura.”
“Eu concordo. E tenho até uma teoria. A loucura é o estado máximo ao qual o ser humano pode chegar. Nós, loucos, somos o estágio mais avançado de evolução da humanidade.”
“Bem, se isso for verdade eu estou retrocedendo. Pois, como lhe disse, eu era louco mas agora sou lúcido.”
“Não se preocupe, isso não faz a menor diferença.” Respondeu o outro, apalpando os bolsos do uniforme como se estivesse procurando algo e fazendo um barulho de 'bip' com a boca. Colocou os dedos polegar e mindinho entre a orelha e a boca, simulando um telefone.
“Sim, meu amor. Tudo bem. No mesmo horário e no mesmo local. Te aguardo. Um beijo.”
Guardando o telefone imaginário, retomou o diálogo.
“Desculpe-me. Era minha namorada. Não sei se lhe disse mas... estou amando!”
“Eu sei como é. Como já sabe, também já fui louco.” Respondeu o outro.
“Marcamos um encontro para partirmos nossos corações. Sempre fazemos isso.” Disse o primeiro.
“Sim, eu me lembro...”
Então, o louco virou o rosto novamente para frente e retornou à sua catatonia.
Dois enfermeiros que observavam a cena comentavam.
“Pobre diabo! Está conversando sozinho novamente.”
“O que será que ele estava pensando?”
“ Ora, loucos não pensam. Nosso expediente acabou. O que pretende fazer?”
“Vou me encontrar com minha noiva. Não sei se lhe disse mas... estou amando! Estou até pensando em me casar, ter filhos, comprar um carro, alugar um apartamento... coisas do tipo.”
“Sinceramente,” respondeu o outro enfermeiro, “para mim isso não faz a menor diferença.”
E os dois saem.

A Esquina

13 de fev. de 2008












“-Pode me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
-Isso depende do lugar para onde você deseja ir-respondeu o gato.
-O lugar para onde desejo ir? Francamente, para mim tanto faz.
-Nesse caso, tanto faz o caminho que você seguirá.
-Contanto que eu chegue a algum lugar...
-Chega, na certa! Contanto que ande o tempo necessário.
-Alice viu que não poderia negar isso.”

Lewis Carrol - Alice no País das Maravilhas



A esquina era em um trecho muito bem iluminado, onde quase todo mundo conhecia. Uma das ruas que formava a esquina seguia de forma oblíqua saindo da cidade e penetrando em uma mata escura e misteriosa.
A menininha chegou até o ponto onde se sentia segura e abraçou sua boneca. Mais um passo e ela estaria fora do alcance das luzes dos postes. Ela esticava o pescoço tentando olhar o que havia no final da rua. Seus pés não se moviam.
-Vocês sabem para onde esta rua leva? Perguntou, virando o rosto para algumas pessoas sentadas embaixo das marquises e bem iluminadas pelas luzes.
-Nunca fomos lá. Respondeu um deles.
A menina cerrou um pouco os olhos para tentar vê-los, pois apesar de estarem iluminados pela luz, ela não conseguia distinguir seus rostos. Era como se estivessem desfocados, deformados e... incompletos?
-Eu queria tanto dobrar esta esquina, saber o que há no final da rua. Dizem que é algo surpreendente. Disse ela.
- Pois deve ser algo terrível porque todos que partiram por esta esquina, rumo à escuridão, jamais retornaram. Respondeu um dos que permaneciam na luz, também cerrando um pouco os olhos para tentar ver a menina. Ela lhes parecia feia, mas isso não os incomodava. Um deles notou que a sombra da menina parecia ter crescido.
A jovem estava pensativa, indecisa e confusa. Olhou novamente para seus interlocutores. Estava mais difícil ainda de distingui-los. Uns permaneciam calados, outros tentavam impedi-la de continuar.
-Não vá! É terrível! As pessoas vão e não voltam.
A jovem percebeu que eles tinham vozes de crianças, apesar de não serem. Procurou sua boneca e não a encontrou.
-Vocês nunca imaginaram que as pessoas não retornam porque lá pode ser um bom lugar para estar. Talvez estejam felizes. Talvez não queiram voltar. Disse a moça, ao mesmo tempo em que levantava o pé, pronta para dar outro passo.
-Temos medo!Nunca fomos lá! Diziam os vultos que permaneciam na segurança da luz.
A mulher deu mais um passo a frente. Agora, ela lhes parecia bonita. Ela sentia medo, mas continuava. Deu mais um passo e outro... e foi aos poucos sumindo dentro da escuridão.