A bela adormecida

22 de abr. de 2010












Triste, tímida, ingênua; ninguém acreditava que ela poderia ter aquele dom tão diverso à sua personalidade. No começo, foram apenas alguns versos que, por acaso, alguém a ouviu recitar. Mas a força da expressão e o sentimento colocado nas palavras levaram o ouvinte às lágrimas. Logo, a fama da moça se espalhou. Ninguém nunca ouvira antes poemas recitados daquela forma, retirando sensibilidade até mesmo dos corações mais duros. Era impossível ficar impassível perante a melodia poética de sua voz. Apelidaram-na de mulher-poesia, outros a chamavam de poesia-viva, pois era como se ela fosse a encarnação da arte poética. Os pequenos grupos que se reuniam para ouví-la recitar, aos poucos se transformaram em multidões. As recitações levavam as pessoas ao êxtase. Como em um ritual religioso, as almas eram tocadas e as lágrimas irrompiam.

Até que um dia, a mulher- poesia sumiu. As pessoas, sedentas pelas palavras que as extasiavam, chegaram ao desespero. Era como uma crise de abstinência; tremores, calafrios, choro compulsivo, suas vidas se transformaram em um caos. Resolveram então atenuar o sofrimento procurando um substituto às palavras sonoras. Encontraram-nas nos livros. Surpreenderam-se ao encontrar neles todas as poesias recitadas por sua diva. Liam tentando imitá-la. Aos poucos, descobriram que cada um tinha sua maneira própria de interpretar. A aflição foi diminuindo, descobriram que aquele paliativo poderia ser um bom substituto às suas necessidades. Montaram um templo; lá, reuniam-se para recitar poemas; a mulher-poesia foi elevada à categoria de Deusa. Ninguém nunca soube o que aconteceu a ela. Muitos diziam que aquela mulher nunca havia existido, outros diziam que ela havia realmente se transformado em versos e que agora habitava todos os poemas do mundo.

Caindo para sempre

20 de abr. de 2010










Ele sentou-se para descansar, pois estava cansado de brincar. Era criança, mas observador; notou quando uma folha desprendeu-se do galho mais alto da árvore e foi caindo vagarosamente rumo ao chão. Ele esperou a queda... mas a queda não veio. Por algum estranho motivo, a folha nunca chegava ao chão. O menino olhava atônito ao estranho fenômeno, esperando que a folha caísse e não jogasse por terra toda a sua razão, cultivada tão bem pelos adultos. Por todos os dias, meses e estações, ele esteve sentado ali, e a folha continuava caindo. Quando ele morreu, enterraram-no ao pé da árvore. Depois de muitos anos, muitos notaram que não havia uma folha sequer sobre o túmulo, mas ninguém percebeu a folha que insistentemente caía.

O beijo

16 de abr. de 2010











Carlinhos sempre sonhou em beijar os lábios de Cláudia. Mas ela era cruel desde criança, e ficava sempre adiando o dia prometido. Apesar de tudo, o menino nunca desistia e à noite ficava sonhando com seu primeiro beijo, na boca da menina que ele amava tanto. Os anos passaram-se e a crueldade da garota foi aflorada pela adolescência. Seu primeiro beijo não foi de Carlos, nem o segundo, nem o décimo e ela fazia questão que ele soubesse de cada um deles. Mas Carlos tinha o coração cheio de amor por sua algoz e esperava o dia em que ela encostaria os lábios nos seus. Eles cresceram, casaram-se com pessoas diferentes, tiveram filhos, netos, mas a imagem de dona Cláudia nunca saía da cabeça de seu Carlos. Quando ela morreu, todos viram um velhinho se aproximando vagarosamente do caixão. Ele tinha os olhos cheios de lágrimas. Seu Carlos se abaixou, com as dificuldades típicas da velhice e beijou carinhosamente os lábios mortos de dona Cláudia, pela primeira e última vez.

Canteiros

7 de abr. de 2010















Ai que vontade de cantar! Cantou José ao avistar o jardim em rosas no canteiro da Central com floridas árvores rumorando no pomar. E ele viu: luz refletida em cores de sua alma no vermelho apaixonado das rosas desabrochadas. Amor brilhante, perfumes coloridos em música das flores. José viu sorriso, viu esperança e viu João.

João no seu canto, observando triste o triste canteiro, as folhas parecendo caçoar com seu canto do desencanto em seu peito. E ele viu: flores caídas e pisadas, vermelho-sangue das rosas desabrochadas. Desilusão, perfumes nauseantes de músicas fúnebres. Jõao viu José, vil sorriso, vil esperança, vil José.