Coração de Pedra

17 de abr. de 2008
















GUILHERME CASTRO


Ainda hoje me dói a lembrança dela, de nossa história. É ainda mais difícil sabendo que serão poucos os que acreditarão em mim, dada a minha condição de pedra, dura, sólida, corroída pela água e pelo vento, agora já há alguns milhões de anos, esperando pelo fim, que, dizem, virá do céu, ou do mar, ou até da própria terra. Pode ser que demore ainda, pode ser amanhã, daqui a pouco. Pode ser que mais alguns milhões de anos me desintegrem com água e vento, e eu nem chegue a ver como foi o fim, o que seria uma pena. Eu gostaria muito de ver o fim. Eu gostaria que acontecesse logo.

Com minha mente não humana, fica difícil calcular a quanto tempo me aconteceu essa história. A minha noção de tempo é diferente. Eu não tenho para onde ir, eu não tenho nada mais urgente para fazer, a não ser contemplar o mar, em sua imensidão, indo e vindo sempre, com mais pressa do que eu. Portanto, o tempo para mim não importa. Eu fico entregue a meus pensamentos, e, quando vejo, lá se foram mil anos, dez mil anos, ou apenas cem.

Também não posso dizer o local exato em que se passou. Tem o mar, como já disse, o céu é de um azul profundo, profundíssimo, onde me perco às vezes. Alguns pássaros sobrevoam, cantando, dando voltas, outras vezes não dão voltas. Na época em que se passou o fato que me demoro a narrar (há de se ter uma paciência como a das pedras), não se via aqueles grandes navios que às vezes passam, nunca perto daqui, mas distante, pontos no horizonte da imensidão azul, lá onde o céu se cruza com o mar. Seres humanos, os que me visitam são poucos, os que me notam, ainda menos, os que conversam comigo, rareiam ainda mais. Alguém me disse uma vez que estou em algum lugar perdido, depois do Atlântico, e que sentia inveja porque eu havia assistido, impassível, a história da civilização. Que seja. É fácil invejar uma pedra quando não se é uma.

A história, não se esqueça, eu ia narrar uma história, é uma história de amor. Um amor de pedra. Ao contrário. As pedras não são seres tão duros que não possam amar. Ou isso, ou não sei o que sou. Um velhinho vinha em visitar às vezes. Ele me disse que às vezes há um engano celestial. E uma alma que era para vir num ser humano, acaba indo parar em uma pedra, uma árvore, ou um animal. Não sei se é meu caso. Mas não vou me prender a isso. Sou uma pedra que pôde amar um dia, essa definição me basta por agora.

Entregue a uma reflexão, certo dia, me aconteceu o inesperado. Algo que nunca havia acontecido antes e que, para minha angústia, não viria a acontecer nunca mais: Um pássaro, um dos que ficam a dar as voltas, voou mais baixo, e mais baixo, até que pousou na areia branca e fofa. Andou alguns passos, a dar bicadas na areia. Que poderia estar acontecendo, eu pensava, que quer esse pássaro? Como o sol ia alto, parou sob a minha sombra e se deixou ficar, na grama rala que já começa a brotar em minha base. Tinha as plumas muito brancas, de uma pureza impecável. Alguém podia toma-lo por um pedaço de nuvem que despencara do céu. Exceto pelas asas. Nas pontas de cada uma, uma mancha preta. Mas uma mancha regular, que seguia medidas geométricas. Tinha um corpo pequeno, mas era grande em envergadura. De asas abertas, possuía a imponência de um rei. Ou de uma rainha, como constatei. Acontece que aquele olhar, profundamente negro, úmido, como se pedisse clemência, com tão sublime candura, era, com certeza, um olhar de mulher.

Algum tempo passou em que nos olhamos, até que levantou vôo e veio se aninhar em cima de mim. Naquele momento, achei que o pássaro vinha me tirar o sossego. Mas mal ela se deitou sobre mim, e senti o calor de seu corpo se espalhando por meus poros, percebi que não vinha tirar me sossego, mas encontrar o seu próprio. O que poderia tirar um pássaro de sua rotina anual, e por em seus olhos tal expressão? Uma troca de almas, pensei eu ( e aqui me interesso já pela definição daquele senhor). Se sou por acaso uma alma trancada em uma pedra, e ela num pássaro, não há nada de anormal em me apaixonar. Sim. Eu já estava apaixonado.



Os dias que passamos juntos foram maravilhosos. Os melhores que uma pedra pode passar. Ela cantava maravilhosamente bem. E cantava para mim. Às vezes voava, ia bem alto, e retornava para mim, se punha a cantar alegremente. Como se tivesse ido ao céu buscar novas melodias, sempre tão harmoniosas. Às vezes, quando o sol batia muito forte, ela ia até o mar e trazia em seu bico tão pequeno algumas gotas d’água para molhar minha superfície. Eu dedicava a ela meus pensamentos mais bonitos, minhas reflexões mais puras. E, se os pássaros não sonham, minha amada o fazia, estou certo, com minhas palavras, as que eu queria dizer, e pela manhã também havia sempre uma nova canção. Certa vez, vi um casal de jovens namorados brincando na praia. Ficamos, eu e minha companheira, observando. Tenho certeza que ela sorria. Às vezes, se deitava sob minha sombra, triste, decerto nos imaginando juntos. Sim, com certeza pensava em mim, como eu sempre pensava nela.

Mas um dia veio a grande nuvem negra. Literalmente. Veio soprando lentamente, como se não quisesse chegar nunca, talvez apiedada já dos dois amantes amaldiçoados na praia. A nuvem indicava o início daquele tempo em que os pássaros precisam ir embora. E embora tivesse alma, minha amada não podia deixar de seguir seus instintos de pássaro, assim como eu não poderia deixar de ser uma pedra. Então, antes que a chuva desabasse sobre nós, minha amada cantou sua última canção, alçou vôo e foi embora. A maior tempestade que já enfrentei. O mar chegou a me alcançar, mas eu estive forte, agüentei corajosamente essa e muitas outras tempestades que se seguiram, tendo no meu interior rochoso a esperança de que ela voltaria um dia, porque poderia achar o caminho de volta. Nunca voltou.

Não posso saber quanto tempo já faz. Minha memória nunca envelhece, e por isso, nunca posso esquecê-la. Nem outro pássaro veio ocupar o seu lugar. E permaneço aqui, aguardando, como Ariadne esperou por Teseu, mas esse nunca voltou. Essa comparação, tomo-lha emprestado de um jovem rapaz que vinha me visitar às vezes. Este teve compaixão de mim, ao invés da inveja. Contava-me muitas histórias como essa, dizendo que lia nos livros, adorava os livros. O rapaz envelheceu, foi embora. Jamais voltou. E eu ainda a esperar minha labiríntica heroína.




Mamãe Saturno

14 de abr. de 2008

















Era uma linda casa. A fachada era toda pintada de vermelho e branco. Em seu interior, as paredes pintadas de azul pareciam refletir o céu com suas distantes estrelinhas brancas.

Nessa casa morava uma bondosa senhora. Não era velha, pelo contrário, era uma das mais jovens do quarteirão redondo. Sofisticada, rica, moderna, ditava a moda e era invejada por muitos. Digo senhora porque ela era mãe de inúmeros filhos, de vários tipos. Como toda mãe, tinha lá os seus preferidos. E como toda mãe, nunca admitia isso.

Ela sempre queria que seus filhos fossem os melhores em tudo o que fizessem. E mesmo quando não eram, procurava de algum modo fazer com que todos acreditassem que eles eram os melhores. Ela sempre foi muito boa em enganar.

Acontece que essa mãe estava sempre trocando de marido. Não se sabe se por necessidade ou se para não ficar mal vista perante as colegas. Pois se você não sabe, trocar de marido regularmente era costume entre quase todas as mães do quarteirão redondo. Além disso, as mães se casavam com seus próprios filhos. Era impossível para elas casarem-se com os filhos das vizinhas.

O novo marido dessa ilustre mãe era o mais bem intencionado possível. Não só com ela, mas com todas as outras mães da região. Logo que se casou, identificou inúmeros problemas em toda a vizinhança. Esses problemas poderiam prejudicar a sua amada, assim como todas as outras mães . Como era ótimo observador, notou também que muitos desses problemas eram causados pelas próprias vizinhas, principalmente as mais pobres. Essas vizinhas tinham a mania de se casar com homens arrogantes, violentos, incultos e desprovidos de fé. Isso só poderia acabar mal. Tais homens não tinham a capacidade suficiente para administrar seus negócios. Além disso, viviam pedindo dinheiro emprestado à sua digníssima mulher. E mesmo pagando juros irrisórios, ainda reclamavam.

Era necessário mostrar a eles que existiam pessoas de bem, dispostas a cuidar da vizinhança. Primeiro, ele exigiu que suas vizinhas trocassem de marido e desposassem amigos de sua confiança. Algumas, por gostarem mesmo de seus maridos ou por serem muito dominadas por eles, se recusaram. Então, o preocupado marido resolveu abolir todos os empréstimos à essas senhoras. Nem mesmo uma pequena xícara de açúcar era possível conseguir.



Mesmo assim ele não estava satisfeito. Afinal de contas ele tinha um compromisso com a paz. Era um desígnio divino. Era necessário expulsar aqueles maridos que maltratavam tanto suas próprias esposas e filhos. Filhos esses que eram obrigados a proteger seus padrastos cruéis e autoritários. Infelizmente, ele teria que enfrentar esses filhos para arrancar seus padrastos patifes de suas casas e salvá-los, mesmo que eles não reconhecessem o bem que ele os estava fazendo.

Então lembrou-se de seus enteados. Eles seriam sua arma. Eles invadiriam o quintal dos vizinhos, penetrariam pela varanda, dominariam a cozinha, os quartos, se apossariam da sala e expulsariam a ponta-pés aqueles malditos senhores que atravancavam o progresso de suas queridas vizinhas.

Contou seu plano à sua mulher, que imediatamente bordou lindas roupinhas para seus filhos. Algumas eram verdes e marrons da cor das plantas e da lama do quintal. Outras eram branquinhas, para os que gostavam de ficar brincando com água. E havia até roupinhas azuis da cor do céu, para as crianças que adoravam brincar com os pássaros. Eles ajudaram seu padrasto a tornar o quarteirão redondo um lugar melhor para se viver. Cumpriram as ordens de sua mãe, brigaram com os vizinhos, socaram o nariz de muitos deles. E assim eles foram crescendo, sempre trajando suas lindas roupinhas coloridas que a mamãe fez. Porém, o sangue dos narizes dos vizinhos e o sangue dos seus próprios narizes foram manchando suas roupas de vermelho. Sua mãe não conseguia mais lavá-las. O sangue estava grudado para sempre. E os meninos cresciam amargos, sem mais nenhuma vontade de brincar. Eles se sentiam como bastardos. Não se consideravam mais filhos de sua mãe. Ela, por sua vez, não os reconhecia , pois estava muito ocupada em bordar as roupinhas para os novos bebês que nasciam.