Vila do sossego

9 de nov. de 2009











Oh, eu não sei se eram os antigos que diziam...
Zé Ramalho- Vila do sossego

“Eles somem todas as noites e só reaparecem de manhã.”

Eu não sabia ao certo aonde iria parar dessa vez. Era um hobbie, viajar sem destino pelo interior de Minas visitando cidadezinhas esquecidas do mapa. Já havia conhecido várias ao longo do Vale do Jequitinhonha e Mucuri. Foi numa dessas viagens aleatórias que cheguei à vila.

De longe eu avistei as casinhas, eram tão poucas que julguei se tratar de uma cidade abandonada. Perguntei ao motorista se o ônibus demoraria a voltar e se passaria por ali. Ele me olhou estranhamente e disse que voltaria pelo mesmo caminho em duas horas. Era o tempo que eu precisava para conhecer o local.

Quando eu disse que iria descer aqui, o motorista me olhou assustado e ficou me encarando. Olhei para trás e notei a expressão séria dos poucos passageiros do ônibus que inclinavam o pescoço para me ver. “Algum problema? Você não pode parar aqui?” Perguntei. O motorista freou o ônibus surrado bruscamente que julguei ouvir uma parte da lataria se desprender. Ele não disse nada, pegou o dinheiro da passagem e respondeu ao meu agradecimento apenas balançando a cabeça.

Havia apenas uma estrada estreita de terra que levava à vila. De longe, já pude perceber que não estava abandonada. Pelo contrário, havia muitas pessoas e grande movimentação, algo que do ônibus era impossível perceber. As pessoas tinham expressões calmas, gestos comedidos e olhares precavidos. Percebi que comentavam algo umas com as outras sempre que me viam. Achei normal, pois o lugar não deveria receber muitos visitantes, a não ser aventureiros como eu, interessados em conhecer cidades e pessoas isoladas nos confins de nosso estado.

Fui ao bar comprar água. Havia dois homens jogando dominó em uma das mesas e outro sentado ao balcão. Os homens do dominó pararam seus gestos quando me viram, um deles permaneceu segurando a peça no ar como se estivesse paralisado ante a minha presença. O homem do balcão me olhou com uma expressão assustada, segurando um copo de cachaça. Nem precisei perguntar, pelo jeito e pelas roupas percebi que ele também era de fora. “Quem atende aqui?” Quando pronunciei essas palavras, imediatamente o homem que estava com a peça de dominó erguida encaixou-a na fileira de peças fazendo um estalo e a partir daí não me olharam mais, concentradas em seu jogo. O homem sentado ao balcão gritou: “Isaías, freguês!” e depois tomou a cachaça de um gole só. “Bem- vindo à Vila do sossego.” Comecei a conversar com o sujeito e descobri que ele era de Goiás. Ele falava de sua terra com tanta saudade que fiquei imaginando por quanto tempo ele estava por aqui. “E não vai voltar para Goiás?” Perguntei. “Agora sim.” Depois se despediu e saiu me deixando sozinho no balcão. Quando olhei para trás, os homens que jogavam dominó já não estavam mais lá. Chamei novamente pelo dono do bar, mas ele não apareceu.

Saí para vasculhar a cidade e tirar umas fotos como eu sempre fazia nessas ocasiões. A primeira foto me assustou. Apesar da câmera digital, as imagens capturadas pareciam mais uma velha pintura do que uma foto. Julguei que minha máquina estivesse estragada porque todas as fotos que eu tirei tinham aquela expressão amarelada e fosca como um pôr-do-sol, os rostos das pessoas saíam pálidos e tristes e até mesmo as crianças que corriam alegres saíam com expressões melancólicas nas fotos.

Foi então que levei o grande susto. Quando parei de tirar as fotos e olhei ao redor não pude acreditar. Já era noite! Olhei assustado em direção à estrada, eu havia perdido o ônibus. “Como pude me entreter tanto!” Pensei alarmado. “Agora eu terei que dormir neste lugar estranho.” Procurei alguém para me indicar uma pensão, mas já não havia ninguém na rua. Eu estava só. Foi quando vi uma luz vinda do bar. Corri e encontrei o mesmo forasteiro goiano sentado ao balcão tomando cachaça. “Fiquei tirando umas fotos e me esqueci do tempo, conhece alguma pensão onde eu possa dormir?” “Você não vai precisar dormir por muito tempo.” Respondeu ele sem me olhar. Fiquei com medo. “Como assim?” Foi então que ele me olhou. Ele tinha um sorriso medonho nos lábios, os olhos arregalados. Ele se levantou e disse: “Eles somem todas as noites e só reaparecem de manhã.” Eu estava cada vez mais assustado. “Eles quem? Onde está todo mundo?” Ele se levantou e andou em direção à estrada. Fiquei parado sem saber o que fazer. Quando vi, ele já estava distante. Corri em sua direção, talvez naquele horário passasse algum ônibus. Quando me aproximei da estrada, algo inexplicável aconteceu. Tudo começou a ficar turvo, a estrada foi sumindo aos poucos junto com o homem e quando me recobrei do susto já não havia estrada, apenas árvores de cerrado, retorcidas e cinzentas. Desesperei-me, entrei no mato e me perdi. Quando achei uma trilha, ela me levou de volta à vila. E foi assim sempre; toda noite eu entrava no cerrado procurando a estrada perdida e chegava novamente à Vila do sossego. Quando amanhecia, os moradores reapareciam vindos não sei de onde, pois à noite, suas casas estavam vazias. Todos me cumprimentavam como se me conhecessem há anos, mas quando eu fazia alguma pergunta relacionada aos fatos estranhos, ninguém me respondia como se eu não existisse.

Compreende agora meu sorriso? Há anos espero que outro forasteiro chegue para me libertar, assim como eu libertei o goiano. Não sei o que me espera no fim da estrada, mas qualquer coisa é melhor do que esta prisão. Sei que você deve estar achando que eu sou louco, mas você terá muito tempo para descobrir que está errado. Olhe para a rua, está vazia. Eles somem todas as noites e só reaparecem de manhã.

“E quando eu olhei, ele já havia sumido.”