Do lado esquerdo da vida

21 de fev. de 2008














“Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.”


O enterrado vivo- Carlos Drummond de Andrade.


Deitado no chão, ele não sabe se navega ou dorme. Ausente e presente, ele viaja imóvel. E seus pensamentos vão e vêm como ondas calmas na sua mente. Os raios de sol, penetrando pela janela entreaberta, tocam seu rosto entorpecido pelo sono.
Ele está de volta. Ele percebe o silêncio, ainda estirado no chão, como se esperasse retornar ao sono e ao sonho. A realidade do sonho o seduz mais do que a realidade real. Lá, a solidão não é percebida e ele faz questão de ser o único habitante do mar infinito de sua calma. Mas este silêncio é real. Não é o silêncio imaginário do sonho. Este silêncio é o silêncio verdadeiro. Ele não pode mais fechar os olhos, seu barco está novamente atracado ao mundo.
Ele se levanta e olha pela janela entreaberta. Ele sempre se recusou a abrir ou fechar aquela janela completamente. Durante o dia, ou a noite, faça chuva, ou sol, a janela sempre mostra apenas a metade de tudo. Ele vê sombras, ele vê marcas e símbolos, ele vê o mundo e não o vê, ele se vê, ele vê as próprias palavras. Mas mesmo com as palavras, o mundo está silencioso.
Ele está sozinho no quarto. A vida que ele pressente ao seu lado não é vida humana, é apenas vida. Ele precisa sair, encontrar-se com o mundo para ter certeza de que ele existe. Ele sai, dando as costas à janela meio-aberta, meio-fechada, mas é como se a levasse consigo.
O mundo brilha sombriamente. Um enigmático clarão percorre sua vista, obscuramente decifrado, ofusca-lhe os olhos, abre-os e fecha-os ao mesmo tempo. O mundo é claramente encoberto, ele pensa. Há tanta coisa para vermos e vemos tão pouco. Ele quer enxergar o mundo, por isso não pode ficar parado. Ele estende a mão procurando outra mão a qual possa segurar. Não há ninguém. “Segue-me”, diz a si próprio. Ele anda, cambaleante, devagar, sem apoio, mas anda. O mundo é cheio de curvas, cheio de esquinas, caminhos longos e becos sem saída. Seus passos sempre o levam à esquerda. Ele sabe disso, mas não pode se endireitar. Caminhar à direita seria caminhar em falso. Ele sabe disso. Às vezes ele tenta e seus passos vão aos poucos se tornando destros, mas sua consciência não deixa. É como se os céus o tivessem condenado a uma eterna deformação.
Ele continua o passeio. Ele vê as crianças que brincam. Elas não sabem que um dia também irão passear pelo mundo e o observar, assim como ele está fazendo agora. Isso o entristece. Ele não se lembra de quando era criança. Talvez elas enxerguem melhor as coisas, pois não enxergam o mundo como nós enxergamos. Ele observa a rua e todos que andam por ela. Pessoas diferentes que se parecem tanto. Aquela rua poderia ser a rua de qualquer país, de qualquer lugar. Ele saúda as pessoas como se fossem velhos amigos. Ele precisa fazer isso. A rua é tão cumprida, cheia de buracos e subidas. Sua mente está cansada, mas a sua dor passa despercebida. O que é a dor individual se comparada com a dor da humanidade!
Ele continua. Terrivelmente fatigado, ele continua sua peregrinação, lutando contra palavras pelo caminho para descrever a vida. Uma luta vã, um duelo inútil. Mas mesmo deste lado surge um minuto de esperança. Um minuto em que a crença se alimenta. Porém é apenas um minuto, nada mais, até que elas apareçam.
As pedras aparecem sempre do lado esquerdo. São muitas, atravancando-lhe o caminho. Ele hesita e dá tempo às pedras de se agruparem, formando cadeias de montanhas. Como transpor a cordilheira? Ele é apenas um homem com dois pés esquerdos. Ele se ajoelha em frente às montanhas, não em adoração, mas por falta de forças para manter-se em pé. Ele quer voltar para casa, deitar-se no chão, retornar ao mar dos seus sonhos onde somente o silêncio ilusório existe. Ele nunca mais vai olhar pela janela entreaberta. Chega de pensar no mundo, chega de pensar em si mesmo também, pois todo o seu prazer já passou. Ele é duas pessoas ao mesmo tempo e nenhuma dessas pessoas é ele. O futuro lhe causa pânico, e ele pensa: “sempre...sempre...” sempre o “sempre” estará ligado ao seu “nunca”. Para que transpor a montanha?
Ele retorna pelo mesmo caminho de palavras colhidas, com a mesma dor, com os mesmos olhos, com o mesmo inimigo. Ele chega à sua casa. Novamente ele pressente algo ao seu lado. Mas desta vez não é vida. A morte o acompanhou, segurando sua mão sedenta de amizade. Ela o encara impassível, com o seu olhar de piedade mórbida. No rosto da morte, ele vê vários outros rostos, como quadros inclinados na parede. A paz da morte é a mesma paz dos seus sonhos, um mar eterno de tranqüilidade, doce paz.
Ele vai até o espelho, o reflexo da morte atrás de sua imagem. Sua boca se abre vacilante, suas palavras são trêmulas, hesitantes: “se você morresse...” Ele pensa em seu homônimo bíblico, o homem escolhido para pai do pai de todos os cristãos. O amor percorre seus pensamentos, o amor de pai que protege o filho fugindo com ele para o Egito. Ele se sente como se fosse seu próprio pai. Um egoísmo toma conta de seu ser, um egoísmo de sobrevivência. Ele quer pegar sua própria mão e fugir do perigo. Ele fecha os olhos e os abre novamente, a morte cada vez mais próxima atrás de si. Suas palavras misturam-se com o espelho de forma que não é mais possível distinguir o que é espelho e o que é palavra. "Bendito sejas, espelho de palavras. Você nos reflete melhor do que nós mesmos." Com vários sentimentos presos dentro de si ao mesmo tempo, ele se olha novamente no espelho. Seus lábios pronunciam seu próprio nome de forma quase inaudível e sussurram, depois, cautelosamente, a dúvida maior que poderia existir no coração de toda a humanidade:
“e agora?”

Uma pequena homenagem a Carlos Drummond de Andrade

Entre Loucos

18 de fev. de 2008













Após vários dias de catatonia, um dos pacientes do manicômio vira o rosto e diz:
“Bom dia, há muito tempo que está aí? Não percebi sua presença.”
“ Sim, Há muito tempo que estou aqui, mas isso não faz a menor diferença.”
“Também és louco?” Perguntou o primeiro.
“ Não mais. Já fui louco, mas agora sou são. Casei-me, trabalho, estudo, dirijo um carro, voto, invisto na bolsa, como gordura, faço guerras... coisas do tipo.”
“Eu entendo”. Disse o primeiro. “Pois eu sou o contrário de você. Eu era são e agora sou louco.”
“Pois então és mais feliz. Sempre achei o mundo mais interessante visto pelo ponto de vista da loucura.”
“Eu concordo. E tenho até uma teoria. A loucura é o estado máximo ao qual o ser humano pode chegar. Nós, loucos, somos o estágio mais avançado de evolução da humanidade.”
“Bem, se isso for verdade eu estou retrocedendo. Pois, como lhe disse, eu era louco mas agora sou lúcido.”
“Não se preocupe, isso não faz a menor diferença.” Respondeu o outro, apalpando os bolsos do uniforme como se estivesse procurando algo e fazendo um barulho de 'bip' com a boca. Colocou os dedos polegar e mindinho entre a orelha e a boca, simulando um telefone.
“Sim, meu amor. Tudo bem. No mesmo horário e no mesmo local. Te aguardo. Um beijo.”
Guardando o telefone imaginário, retomou o diálogo.
“Desculpe-me. Era minha namorada. Não sei se lhe disse mas... estou amando!”
“Eu sei como é. Como já sabe, também já fui louco.” Respondeu o outro.
“Marcamos um encontro para partirmos nossos corações. Sempre fazemos isso.” Disse o primeiro.
“Sim, eu me lembro...”
Então, o louco virou o rosto novamente para frente e retornou à sua catatonia.
Dois enfermeiros que observavam a cena comentavam.
“Pobre diabo! Está conversando sozinho novamente.”
“O que será que ele estava pensando?”
“ Ora, loucos não pensam. Nosso expediente acabou. O que pretende fazer?”
“Vou me encontrar com minha noiva. Não sei se lhe disse mas... estou amando! Estou até pensando em me casar, ter filhos, comprar um carro, alugar um apartamento... coisas do tipo.”
“Sinceramente,” respondeu o outro enfermeiro, “para mim isso não faz a menor diferença.”
E os dois saem.

A Esquina

13 de fev. de 2008












“-Pode me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
-Isso depende do lugar para onde você deseja ir-respondeu o gato.
-O lugar para onde desejo ir? Francamente, para mim tanto faz.
-Nesse caso, tanto faz o caminho que você seguirá.
-Contanto que eu chegue a algum lugar...
-Chega, na certa! Contanto que ande o tempo necessário.
-Alice viu que não poderia negar isso.”

Lewis Carrol - Alice no País das Maravilhas



A esquina era em um trecho muito bem iluminado, onde quase todo mundo conhecia. Uma das ruas que formava a esquina seguia de forma oblíqua saindo da cidade e penetrando em uma mata escura e misteriosa.
A menininha chegou até o ponto onde se sentia segura e abraçou sua boneca. Mais um passo e ela estaria fora do alcance das luzes dos postes. Ela esticava o pescoço tentando olhar o que havia no final da rua. Seus pés não se moviam.
-Vocês sabem para onde esta rua leva? Perguntou, virando o rosto para algumas pessoas sentadas embaixo das marquises e bem iluminadas pelas luzes.
-Nunca fomos lá. Respondeu um deles.
A menina cerrou um pouco os olhos para tentar vê-los, pois apesar de estarem iluminados pela luz, ela não conseguia distinguir seus rostos. Era como se estivessem desfocados, deformados e... incompletos?
-Eu queria tanto dobrar esta esquina, saber o que há no final da rua. Dizem que é algo surpreendente. Disse ela.
- Pois deve ser algo terrível porque todos que partiram por esta esquina, rumo à escuridão, jamais retornaram. Respondeu um dos que permaneciam na luz, também cerrando um pouco os olhos para tentar ver a menina. Ela lhes parecia feia, mas isso não os incomodava. Um deles notou que a sombra da menina parecia ter crescido.
A jovem estava pensativa, indecisa e confusa. Olhou novamente para seus interlocutores. Estava mais difícil ainda de distingui-los. Uns permaneciam calados, outros tentavam impedi-la de continuar.
-Não vá! É terrível! As pessoas vão e não voltam.
A jovem percebeu que eles tinham vozes de crianças, apesar de não serem. Procurou sua boneca e não a encontrou.
-Vocês nunca imaginaram que as pessoas não retornam porque lá pode ser um bom lugar para estar. Talvez estejam felizes. Talvez não queiram voltar. Disse a moça, ao mesmo tempo em que levantava o pé, pronta para dar outro passo.
-Temos medo!Nunca fomos lá! Diziam os vultos que permaneciam na segurança da luz.
A mulher deu mais um passo a frente. Agora, ela lhes parecia bonita. Ela sentia medo, mas continuava. Deu mais um passo e outro... e foi aos poucos sumindo dentro da escuridão.