Feliz

29 de jun. de 2014











Não sei se é certo escrever a história de meu amigo Felizberto, pois tenho certeza de que vocês irão rir de sua tragédia. Durante toda a sua vida, eu fui o único que não riu das suas desgraças, de seu destino torto, das brincadeiras divinas a que ele era alvo. Mas eu não poderia deixar de contar tudo que presenciei. Foram acontecimentos tão inimagináveis que se não forem escritos por alguém que goze de certa credibilidade, ficarão restritos às histórias populares, como causos inventados pela imaginação do povo. Mas creiam, meus amigos, por mais improvável que seja, tudo o eu que contar realmente aconteceu com meu amigo Felizberto, o mais caipora de todos os homens que já caminhou pela terra.

Eu o conheci na escola, mais precisamente na quarta série do ensino fundamental. Achei estranho um menino tão velho como ele na quarta série. Felizberto tinha quatorze anos de idade enquanto todos os outros alunos tinham dez, inclusive eu. Rapidamente me tornei seu amigo. Nenhum dos meninos gostava dele, apesar de Felizberto estar sempre alegre e brincando com todos. Não demorou para que todos passassem a chamá-lo de “Feliz”, o que é muito contraditório, como vocês irão ver.

Eu imaginava que os garotos não gostavam de Felizberto devido ao fato de ele ser coxo, vesgo, banguela, magrelo e desajeitado, mas logo percebi que esse motivos eram os menores.

Com o estreitamento de nossa amizade, passei a frequentar a casa de Felizberto. Ele morava com a mãe, uma senhora até certo ponto simpática, apesar de estar sempre mal vestida, com os cabelos descuidados e os dentes podres. Ela me tratava bem, pois eu era o primeiro amigo de Felizberto e a primeira pessoa a entrar na cabana de madeira e palha em que eles moravam. Entendam bem, a primeira pessoa fora o agente da prefeitura que vinha de tempos em tempos fiscalizar a quantidade de ratos, pulgas e baratas que habitavam a casa. E entendam por “tratar bem” o fato de ela me convidar a sentar sempre na única cadeira existente na casa, uma cadeira dura e que deixava coceiras, enquanto eles se sentavam no chão. Além disso me serviam sempre um café amargo e ralo. Eu aguentava tudo isso por pena do meu amigo e da sua mãe. Muito tempo depois percebi que ela não precisava de pena, mas o meu infeliz amigo Feliz, ah! Esse sim merecia toda a pena do mundo.

Conversando com sua mãe, descobri tudo a respeito de Felizberto, desde o seu nascimento até àquele momento. A primeira coisa que descobri é que sua mãe havia sido uma meretriz em um bairro de classe baixa no interior do Estado. No exercício de sua nobre profissão ela conheceu o pai de Feliz, um bêbado sexagenário que sua mãe foi obrigada a aceitar em uma noite de freguesia escassa. Foi aí que o azar de Felizberto começou, pois devido a um acaso do destino o preservativo estourou e sua mãe veio a engravidar. O pai de Felizberto, ao qual sua mãe nunca soube o nome, morreu no dia seguinte ao tomar uma pinga de fundo-de-quintal contaminada com um produto químico. Foi encontrado vomitando sangue em frente ao bordéu no qual a mãe de Felizberto trabalhava.

O mais incrível nisso tudo é que ela não tinha a menor vergonha do seu passado e o dizia com a maior naturalidade a qualquer um que quisesse ouvir. Isso valeu ao meu amigo Feliz uma lista de apelidos inspirados na antiga atividade profissional de sua mãe, aos quais não convêm transcrever nesse relato.

Assim, passando a frequentar a casa de Felizberto, me tornei mais ainda “o seu amigo”. Ninguém entendia o porquê, e às vezes nem eu. Talvez tenha sido pena, mas também havia uma admiração pela resignação de Feliz frente ao seu azar. E não era uma simples resignação. Era uma resignação calma, seguida de uma esperança resistente. Feliz dizia que não era tão azarado, que um dia tudo daria certo para ele. Realmente era difícil acreditar que alguém pudesse ser tão azarado durante toda a vida. Infelizmente foi o que pude comprovar- e Felizberto também, para seu azar.

Eu pude perceber uma das manifestações da cruel fortuna de meu amigo quando passei a acompanhá-lo pelas ruas. Não havia uma rua ou esquina em que algo não acontecesse a ele e somente a ele. Hora, era um buraco em que ele tropeçava e torcia o pé, outra hora era um carro que passava numa poça de água e lhe molhava toda a roupa. Até mesmo parado ele não estava livre. Quantas vezes não vi o mesmo cachorro, um dos vira-latas do nosso bairro, aliviar sua bexiga na perna coxa do Feliz. O meu amigo apenas esboçava um palavrão e a triste expressão- “de novo!”

Mas o que mais me chamou a atenção foi o fato dos pés de Felizberto sempre irem de encontro a algum material orgânico proveniente dos intestinos humanos ou animais espalhados pelas vias de tráfego. Isso lhe valeu mais um apelido, além do irônico “Feliz”, que lhe seguiria por toda a sua breve e sofrida vida. Todos passaram a denominá-lo Felizberto pisa-merda. Parece que esse apelido o feria profundamente, apesar de ele não demonstrar. Quando passou a ser chamado assim pelos cruéis meninos da escola, era possível perceber uma ponta de tristeza em seus olhos, o que ele tentava disfarçar com um meio sorriso cheio de dor.

Felizberto conversava muito sobre todos os assuntos. Passei a ser confidente de seus sonhos. E como ele sonhava! Ele queria terminar os estudos, entrar em uma universidade e se graduar doutor em medicina. Eu ficava imaginando como os pacientes encarariam um médico vesgo, coxo e banguela. Mas eu tentava ser otimista em meus pensamentos, pois com a ajuda da tecnologia esses problemas poderiam ser sanados. O que eu não acreditava era como ele iria se formar se era azarado até mesmo nos estudos. 

Não digo que ele era burro ou um mau aluno, muito pelo contrário, ele era inteligentíssimo e muito aplicado. Digo azarado mesmo. Felizberto era sempre o que mais estudava, mas quando chegava o dia da prova, algo sempre acontecia. Às vezes se atrasava por algum motivo e as professoras não lhe repetiam o exame. Assim como os alunos, as professoras não gostavam dele, nenhuma nunca gostou. Outras vezes, ele ficava tão nervoso que não conseguia se lembrar de nada que estudara durante toda a semana, ou então, sem querer, marcava a opção errada e só se lembrava depois que o teste já estava entregue. Não era raro sua prova sumir, ele reclamar com a professora, com a diretoria e nada ser resolvido. Nem mesmo minhas tentativas de ajudá-lo surtiam efeito. E assim, ele ia repetindo ano após ano a mesma quarta série. E com isso, após um ano, tivemos que nos separar na escola. Porém, nossa amizade estava consolidada e eu estava decidido a não abandoná-lo, mesmo com medo daquele azar acabar se voltando contra mim também.

Além do seu fracassado sonho estudantil, Felizberto também queria trabalhar. Uma vez ele me disse que não precisava, pois um tio distante lhe enviava mensalmente uma boa quantia em dinheiro. Achei que era delírio do Feliz, pois ele vivia miseravelmente com sua mãe e não havia nenhum vestígio de dinheiro algum enviado para ele. Mais tarde descobri que Felizberto falava a verdade, mas não vamos nos adiantar. É preciso seguir linearmente, para perceber o quanto o destino castigava meu sofrido amigo dia após dia. Como ia dizendo, ele queria trabalhar. E até que ele tentou. Seu primeiro emprego foi como entregador de pão, mas devido ao seu defeito físico era impossível guiar a bicicleta sem cair de dez em dez metros. O padeiro descontava de seu salário todos os pães que se perdiam com as quedas. Resultado: foi preciso uma semana de trabalhos extras para indenizar a padaria. Porém, o padeiro desistiu da punição, pois eram tantos copos e pratos quebrados durante o trabalho que Felizberto precisava sempre trabalhar uma semana a mais para cobrir o prejuízo da semana anterior e assim por diante, ininterruptamente. Houve outras tentativas de trabalho que dariam um livro inteiro de gargalhadas para os leitores insensíveis. Em respeito ao meu finado amigo, elas serão suprimidas.

Felizberto, apesar de todas as suas limitações, não se rendia e arriscou-se até a amar. Já que ele não tinha sorte nos negócios quem sabe não a teria no amor. Terrível engano. Primeiramente porque ele resolveu se apaixonar pela garota mais assediada pelos rapazes do bairro. Com seus hormônios aflorados pela idade, Felizberto não se constrangeu em declarar seu amor à Sandrinha, a quem nem mesmo eu ousava me aproximar. A única coisa que Feliz conseguiu de Sandrinha foi um olhar de escárnio seguido de um incontrolável acesso de risos. E para piorar, a cruel menina espalhou para todo mundo a ousadia de Felizberto. Meu amigo ficou arrasado por meses. Foi assim com a Sandrinha, com a Bel, com a Elisabete, com a Joana, com a Loirinha, com a Berenice, etc e etc.

Foi após uma dessas desilusões amorosas que Felizberto me falou pela primeira vez sobre a morte. Ele dizia que morrer talvez fosse bom e me fez fazer-lhe uma promessa. Se ele morresse antes de mim, eu deveria espalhar sementes de rosa vermelha sobre seu túmulo. Não rosas prontas, crescidas, apenas as sementes. Ele queria que as rosas crescessem aos poucos e lentamente fossem cobrindo seu túmulo.

Um dia, em um de seus acessos de alegria repentina, Felizberto me chamou em casa e disse que tinha algo importante a fazer. Fomos pela rua, ele com seus tropeços, quedas e pisadas em excrementos habituais. Chegamos à uma lotérica. Eu não acreditava no que estava vendo. Apesar de toda a sua urucubaca, Felizberto comprou um único bilhete de loteria com uma sequência de números improvável de se ganhar e para piorar o prêmio estava acumulado e tivemos que enfrentar uma enorme fila onde muitos apostadores compravam cinco, dez, vinte bilhetes de uma vez. Felizberto saiu pela rua sorridente, com os olhos brilhando e dizendo: “esse dinheiro será para realizar um velho sonho.” Fiquei triste ao ver tamanha ingenuidade de meu amigo, mas não lhe queria estragar a felicidade momentânea.

Não pude acreditar quando o resultado saiu. Felizberto estava bilionário como único ganhador do prêmio acumulado. Corri até sua casa. Nos abraçamos e pulamos de alegria. Era a primeira vez que Felizberto tinha sorte em alguma coisa. E que sorte! Parecia que toda a sorte que não tivera em sua vida havia se acumulado e agora transbordava de uma vez, concentrada naquela única e improvável sequência de números que o tornava rico. Ficamos muito felizes, finalmente tudo iria mudar. A mãe de Felizberto ficou de boca aberta, parada, com os olhos brilhando de cobiça ao saber da notícia. Aconselhei Felizberto a não confiar em sua mãe e em mais ninguém. Ele e eu erámos capazes de administrar aquele dinheiro. Ele não precisava da ajuda daqueles que sempre o desprezaram. Feliz, mesmo triste, concordou. Era difícil para ele não confiar na integridade das pessoas, tamanha sua inocência.

A primeira coisa que aconselhei Felizberto a fazer com sua fortuna foi cuidar de si mesmo. Com a ajuda da medicina e da tecnologia era possível consertar ou pelo menos minimizar seus defeitos físicos. Felizberto então encaminhou-se ao melhor médico particular do país. Fez vários exames e aguardou ansiosamente para começar as cirurgias. Nunca me esquecerei da expressão de dor no olhar de Feliz naquela manhã de domingo ao bater na porta da minha casa. Ele segurava os resultados dos exames e foi entrando e sentando no sofá sem dizer uma palavra. “Veja isto”. Disse ele me entregando o laudo médico. Felizberto estava com um câncer já em estado avançado de metástase. Além disso, era necessária urgentemente uma transfusão dos dois rins e do fígado, pois esses seus órgãos estavam a um passo de falir. O médico dava a Felizberto o prazo máximo de uma semana de vida. O mais incrível nisso tudo e o que mais me chocou foi o fato de ele nunca ter apresentado nenhum sintoma, nem do câncer nem da ineficiência de seus órgãos condenados. Somente naquele momento, depois da maior felicidade que ele conseguiu ter na vida é que aquela trágica notícia chegava. Oh, meu desgraçado amigo. Como sofri naqueles dias por você.

Após aquela notícia sugeri a Felizberto que aproveitasse os dias que lhe restavam. Ele poderia viajar, se divertir, fazer tudo o que sempre quis. Felizberto não concordou. Ficou em sua humilde casa. Triste, esperando o golpe final do destino. Eu ia lhe visitar todos os dias e creio que essas visitas foram os últimos momentos de felicidade de Felizberto.

Quando os efeitos de sua doença começaram a se manifestar, Felizberto me entregou um papel e disse que era seu testamento. O documento deveria ser aberto somente após sua morte. E assim o fiz.

Felizberto foi enterrado em uma vala comum em um cemitério público, pois eu também era pobre e não consegui ajuda para dar-lhe uma sepultura digna. Ele não deixou nenhum dinheiro disponível para seus gastos funerários. Tudo o que ele tinha estava agora em seu testamento.

A mãe de Felizberto estava excitada durante a leitura do documento. Porém, ficou decepcionada. Felizberto deixara toda a sua fortuna para uma instituição de deficientes físicos que estava prestes a fechar as portas por falta de verba.

Sua mãe o amaldiçoou. Durante seu acesso histérico disse coisas que eu já suspeitava mas não havia como provar. Ela gritava que agora não teria mais aquela “miséria de dinheiro” que o tio de Felizberto enviava todo mês. Durante todos aqueles anos, a megera roubava o dinheiro que era destinado a Feliz pelo seu tio e gastava com não-sei-o-quê. O que eu sabia era que Felizberto nunca foi beneficiado com aquele dinheiro.

Eu era o único que ia visitar Felizberto no pobre cemitério onde ele havia sido enterrado. Depois de algumas semanas ninguém mais se lembrava do Felizberto-pisa-merda. Então um dia me lembrei da promessa que havia feito a ele. Corri a uma floricultura, comprei sementes de rosa vermelha e espalhei pelo seu túmulo. 

Tive que viajar a trabalho e só retornei vários meses depois. Uma das primeiras coisas que fiz foi retornar ao túmulo do meu amigo. Vocês não imaginam minha surpresa ao ver seu túmulo coberto de cravos brancos. Só então me lembrei de um trecho da conversa que tive com Felizberto sobre seu desejo de ter o túmulo coberto de rosas e que eu incrivelmente havia esquecido. Felizberto havia me dito que era alérgico a cravos brancos. Vocês não imaginam a decepção que tive comigo mesmo. Não me lembrava disso e consequentemente não conferi as sementes antes de comprar, confiando nas palavras da vendedora. O meu esquecimento foi o último golpe do azar no trágico destino de Feliz.