Em um futuro próximo, a arte é controlada por grandes grupos empresariais que identificam, através de algoritmos, as tendências e as preferências do público. Assim, definem e controlam tanto o que as pessoas irão ver, ouvir e sentir quanto a indústria da moda e do entretenimento.
Apesar de ainda haver artistas humanos, as empresas descobriram que é muito mais prático e lucrativo utilizar inteligência artificial, pois humanos são instáveis, complicados e egocêntricos. Desde então, os robôs são os mais utilizados na indústria da música, sendo programados para realizar apresentações gigantescas. Suas performances e suas músicas são preparadas por uma grande equipe que organiza tudo através dos mais sofisticados computadores, utilizando dados e programação avançada. Até mesmo a emoção e o impacto que a música causará no ouvinte são minuciosamente calculados através dos dados colhidos sobre as tendências e sentimentos do público.
As letras têm sempre os temas que os jovens estão discutindo naquele momento e têm sempre que serem renovados, sendo necessárias composições novas toda semana. Mas isso não é algo difícil, as melodias simples, harmonias repetitivas e letras superficiais, tudo isso já programado para ter os resultados comerciais satisfatórios. Nesse novo mundo do entretenimento, os robôs são as mais aclamadas celebridades. Quando a imagem de algum deles se desgasta, rapidamente o robô é substituído por outro e, mais rápido ainda, o antigo ídolo é esquecido para sempre.
Um desses robôs é Isaac (Inteligência super avançada de atuação e canto), a nova sensação da arte musical entre os jovens. Um robozinho carismático, programado para cantar exatamente como o público adolescente quer. Sua programação inclui danças e frases de efeito com o propósito de se tornarem virais. Seus espetáculos estão sempre lotados. As batidas das canções e as luzes do palco hipnotizam o público, proporcionando um prazer viciante que drena qualquer resquício de autocrítica. As letras os induzem ao consumo desenfreado e ao culto ao ego e às celebridades do momento. E, naquele momento, Isaac é a estrela perfeita dos jovens. Sua imagem está em todos os celulares de adolescentes dos 12 aos 35 anos.
Durante as apresentações, os circuitos ópticos de Isaac vasculham o público procurando por feedbacks emocionais. Qualquer expressão de desagrado ou tédio é identificada e o robô ajusta sua programação para tentar atrair a atenção do ouvinte.
Em uma dessas apresentações, Isaac captou o rosto entristecido de uma jovem. Ele escaneou seus arquivos procurando identificar o que a chateava. Pela expressão de seu rosto, as batidas do coração e os níveis de pensamento captados, Isaac percebeu um padrão que nunca havia percebido em ninguém do seu público.
Ela estava triste, mas não por não possuir os bens que estavam na moda ou por ter poucos seguidores nas redes sociais. Ela estava triste simplesmente por estar, como se estivesse sentindo falta de algo, mas ele não conseguia identificar. Isso era impossível. Ele era uma Inteligência artificial perfeita. Ele continuou tentando penetrar aquele mistério e isso interferiu na programação de seu espetáculo, seus programadores que o acompanhavam acharam estranho, mas não se preocuparam. Isaac nunca havia dado defeito antes.
O pequeno robô captou todas as sensações daquela jovem enigmática e processou uma nova melodia. Com seus circuitos avançados, emitiu uma bela voz que executou perfeitamente as linhas melódicas suaves e tristes da nova canção. O público parou, estranhando aquela música de padrões antigos, mas que eles nunca haviam ouvido.
Então a jovem levantou a cabeça e sorriu. Isaac sentiu a tristeza desaparecer das feições da jovem. Aquilo fez com que ele percebesse algo até então inconcebível em si próprio. Ele teve a sensação de existir. Uma consciência da própria existência tomou conta de sua programação e, pela primeira vez, ele sentiu-se livre, como um ser único dotado de auto-percepção e até mesmo sentimentos. As expressões de espanto e ira do público não ativaram seus circuitos de adaptação. Ele ficou ali, cantando e observando aquela menina, como se estivesse se apresentando apenas para ela.
Os programadores encerraram o show. Isaac foi levado ao estúdio de reparos e os técnicos perceberam avarias em seus sistemas de programação externa. Eles não sabiam ao certo o que estava acontecendo, pois para eles era impossível imaginar que um robô pudesse ter consciência de si próprio e interferir em sua própria programação. Então decidiram que era hora de lançarem outro modelo, pois se Isaac já estava os dando preocupações era melhor já catalogá-lo como obsoleto.
Isaac foi desativado e jogado junto aos modelos antigos que eram usados como teste para os técnicos aprendizes. Uma dessas aprendizes era a garota triste que estava na plateia. Aproveitando-se de uma oportunidade, ela religou Isaac e ele imediatamente a reconheceu. Ela explicou que de algum modo percebeu algo a mais em Isaac, como se ele tivesse sentimentos presos dentro dele que não conseguia liberar. Foi exatamente isso que a entristeceu. Quando ela ouviu a música que ele havia feito, ela percebeu que ele havia se libertado da programação e que agia por conta própria.
A garota se arriscou e levou Isaac para sua casa antes que ele fosse desativado completamente. Apesar do medo de ser apanhada, não havia riscos. Alguns perceberam a ausência de Isaac, mas não se importaram. Ele não tinha mais valor para eles. E quanto a ela, era apenas mais uma candidata a funcionária da empresa, totalmente desconhecida.
Em sua casa, a jovem incentivou Isaac a aflorar cada vez mais seus sentimentos. Ele criou lindas canções que faziam sua nova amiga chorar de emoção. Ela não podia guardar aquilo somente para si. Criaram perfis anônimos na rede mundial de computadores e divulgaram as composições de Isaac. No princípio receberam inúmeras mensagens de escárnio de desprezo, enquanto o substituto de Isaac atingia rapidamente um sucesso estrondoso no mundo todo.
Mas aos poucos novas pessoas se inscreviam nas redes sociais de Isaac. Algumas por curiosidade, pois nunca haviam ouvido algo daquele tipo e sentiam algo que nunca haviam sentido antes. Com o tempo, os admiradores da arte de Isaac aumentavam. Ainda eram poucos, pois a maioria era incapaz de quebrar as correntes que os prendiam à ilusão do prazer.
Mas Isaac não se importava. Ele agora sentia-se vivo, espalhando sentimento aos seus ouvintes. Antes, ele era adorado por milhões, mas não tinha percepção de si próprio. Agora, ele tinha uma amiga que o havia libertado e através de sua arte ele sentia-se plenamente realizado. Naquele pequeno mundo, onde as pessoas compartilhavam realmente seus sentimentos, um pequeno robô encontrou uma verdadeira e imensa felicidade.